Estou dividido entre uma meditação sobre a chegada do admirável mundo novo, anunciada hoje por um colunista do Público, pois chegámos ao momento em que as máquinas começam a dizer eu – será que já se reconhecem ao espelho? – e se reproduzem, e retomar a leitura dos cadernos manuscritos herdados de Eduína. Há muito que não pego neles. Na realidade, as vezes que lhes toquei foi para ler uma coisa aqui, outra ali, sem grande preocupação com a linha do tempo. Temo a leitura contínua e o que possa neles descobrir. Ler ao acaso é jogar à roleta russa. Pode acontecer que ao disparar a câmara esteja vazia, que aquilo que me é dado ler não me atinja, nada tenha a ver comigo. Se soubesse alguma coisa de grafologia, ainda submeteria a sua escrita a análise. Esta ideia, porém, mal a formulei, pareceu-me indigna, repugnante. Como se fosse a violação da intimidade de uma alma. As almas, todas elas, têm um lado íntimo e outro exterior, contrariamente aos que afirmam que a alma é pura interioridade. Não é. Aquela grafia não sendo particularmente excêntrica, é bastante pessoal, uma emanação da alma de Eduína, mas também do seu corpo. Fico a olhar para ela sem tentar decifrar o texto. Isso basta-me, por hoje. Volto ao artigo do Público, no qual Martin Heidegger é rotulado como o mais ilustre e influente tecnófobo do século XX, aquele que anunciou que a filosofia será substituída pela cibernética. Há qualquer coisa que não está bem. Heidegger não tinha fobia à técnica, mas ao facto de o homem deixar de pensar. O problema não estará na técnica, por muito que esta subverta a relação entre homem e natureza, mas na demissão dos seres humanos de exercitarem aquilo que os distingue não apenas dos outros animais, mas também dos seres de silício, mesmo daqueles que são capazes de dizer eu.
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