domingo, 24 de dezembro de 2023

Consoada

Chegámos ao dia cuja noite é a noite de consoada. Pasmo não poucas vezes com a quantidade de palavras que uso e cujo sentido efectivo desconheço. Consoada é uma delas. Claro que sei o que é a noite de consoada. Esse saber, porém, diz pouco, é uma ciência que não passa de um minúsculo ilhéu no mar semântico da palavra consoada. Perante a ignorância, decido investigar. Na origem está o verbo consoar. Contudo, esse verbo, como muitos dos verbos que usamos, é equívoco, transportando mais que um sentido e tendo mais que uma origem. Em resumo, são dois verbos. No primeiro, consoar significa soar conjuntamente, mas também rimar. Estamos na área semântica do som. Deriva do latino consonāre, que significa ressoar juntamente. Ora a consoada não é um concerto coral, onde as vozes dos consoados se juntam e em uníssono ressoam. Embora, seja uma possibilidade interessante. Existe uma segunda dimensão semântica de consoar. Caso seja a versão intransitiva, então significa celebrar a consoada. Se, porém, for a versão transitiva, significará comer por consoada. Na sua origem, encontra-se um verbo latino, cōnsōlor, cujo infinitivo é cōnsōlārī e nos remete para a ideia de reconfortar. Contudo, podemos continuar a escavar no léxico e, de imediato, encontramos na raiz de cōnsōlor o verbo, também latino, sōlor. Que nos dirá ele? Fala-nos em aliviar, ajudar, socorrer. A consoada, então, será um exercício em que nos socorremos, ajudamos ou aliviamos uns aos outros, e isso reconforta-nos. Podemos ainda ir um pouco mais longe e tentar descobrir de onde vem sōlor. Aqui, as minhas fontes (o Wiktionnaire) perdem alguma precisão e apenas oferecem uma conjectura. E como todas as conjecturas, esta está sujeita a refutações. É provável que sōlor derive de sollus. Este será uma variante arcaica de solus, cujo significado era todo ou inteiro. Consta mesmo que sollus é o vocábulo latino mais antigo para significar o todo, o inteiro. Então, a consoada será aquela refeição conjunta em que nos tornamos numa totalidade, onde subsistirá a ideia de comunidade familiar, e ainda nos tornamos inteiros, onde restauramos a nossa inteireza, a nossa completude. E isso reconforta-nos, torna-nos mais fortes. Talvez aqui possamos juntar os dois verbos consoar, aquele que fala em ressoar conjuntamente e aquele onde restauramos a nossa inteireza em comunidade familiar. Essa restauração do todo é como uma canção, que cantamos completos na totalidade a que pertencemos. Não há nada melhor de que nos entregarmos à ociosidade da especulação. Curiosamente, na história evangélica do cristianismo, não é no momento que antecede o nascimento do Menino que se celebra a refeição reconfortante, mas no tempo que antecede a morte desse Menino, agora homem, na última ceia, que é, na verdade, uma ceia de consolação que prepara a morte, mas também o novo nascimento, o restabelecimento da inteireza perdida pela desatenção de Adão e Eva. Uma boa Consoada.

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