terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Uma teologia da estucha

Entre o Natal e o Ano Novo está por cá? Por cá, o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini, queria dizer por Lisboa. Respondi que não estaria. Tenho em agenda uma viagem com as netas, que me afastará da capital. Algum acontecimento especial, perguntei. Está cá o Hans, referia-se a Hans Castorp, e a mulher. Como já terei contado por aqui, Hans Castorp foi discípulo do padre Lodo, embora nunca tenha sabido em que condições ocorreu esse discipulato. Mais tarde casou com Emilia Bazán. Melhor, Emilia Pardo Bazán. Nunca deixou fenecer a amizade com o padre Lodo e, não poucas vezes, o visita em Lisboa. Por norma, isso dá direito a um almoço ou jantar grupal, no qual o velho jesuíta conjuga diferentes amizades e as junta numa atmosfera amena, onde uma conversa cordial não esconde diferentes visões do mundo, muitas delas pouco concordantes com o espírito da Companhia de Jesus. Há mesmo entre os membros do grupo alguns representantes do velho jacobinismo anti-jesuítico, mas que não resistiram à afabilidade do padre italiano. As divergências, porém, nunca ultrapassam a benevolência de pequenos chistes, que fazem sorrir. Terei de ver se eles ainda estarão cá depois da passagem de ano, essa estucha. Estucha, sublinhei eu com ar interrogativo. Sim, estucha, estopada, uma chatice, aquela coisa das passas e da meia-noite. Ninguém o obriga ao ritual das passas, de facto, uma coisa insuportável, mas estucha, nunca lhe tinha ouvido tal palavra. Foi uma confessada que me a ensinou. Chega ao confessionário e todos os pecados que debita acabam com a expressão uma estucha. Parece-me uma pecadora enfadada, respondi. Talvez, talvez o pecado leve à perda dos homens mergulhando-os no aborrecimento, acrescentou. O melhor, depois do spleen baudelairiano e da nausée sartriana, seria elaborar uma teologia da chatice ou, melhor, da estucha. Ele riu-se e ficámos de falar daqui a dias.

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