Depois de uma manhã com
aguaceiros, alguns bastante irados, ameaçando mesmo apedrejar carros e peões, a
tarde furtou-se ao império da cólera e permitiu que um sol radioso caísse sobre
a cidade. Um brilhante sol de Inverno, apesar de estarmos no Outono. Há um
vento frio, quase cortante, a soprar de Norte, mas apetece estar na rua,
caminhar sem destino definido, a não ser o de retornar a casa. Há 383 anos, os
conjurados puseram fim ao domínio dos Filipes, um acto sensato, pois quem teria
paciência para falar uma algaraviada que se fala ali ao lado a que, por
equívoco, chamam espanhol, mas que não passa de castelhano. Eu sou como o
outro, embora o outro nem chegasse a ser um heterónimo, mas um semi-heterónimo,
que dizia Minha Pátria é a língua portuguesa. Não gostaria de ter de
falar em espanhol, não porque deteste Espanha, não detesto, pelo contrário, mas
porque os sons da minha infância, os sons que ouvia e ainda não os sabia
imitar, eram na música do português, na qual terei sido embalado em algumas
noites mais tempestuosas. O tal semi-heterónimo também diz uma coisa sobre a
ortografia que subscrevo palavra por palavra: Sim, porque a orthographia
também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração
greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
Aquilo que, em 1911 e em 1990, fizeram ao português, foi destruir-lhe a
dimensão visual, a forma como se vestia, primeiro passo para dinamitar a
sonoridade. Quiseram, em nome da plebe, destruir-lhe os traços nobres, o aspecto
aristocrático, mas os Miguéis de Vasconcelos da língua não sabem que aquilo de
que a plebe mais gosta é do aspecto aristocrático, e tudo o que se apresente a
essa plebe como plebeu merece-lhe o maior dos desprezos. O que fizeram ao
português, quanto ao aspecto visual da língua, teria um equivalente, no campo
do património, na destruição de tudo aquilo que perdeu a utilidade. Castelos sem cavaleiros,
conventos sem monges, igrejas sem culto, ruínas romanas sem romanos? Não passam de
consoantes mudas. Que se deitem abaixo. Foi isto que fizeram ao português, destruíram-lhe
a memória, roubaram-lhes a filiação, apagando os retratos de família. E nem
foram precisos espanhóis. Devo ter sofrida uma insolação, para tão exaltado
verbete.
Sem comentários:
Enviar um comentário