sábado, 30 de dezembro de 2023

Presunção

Uma noite com muito tempo sem conseguir dormir. Acabou por ser verdadeiramente rentável. Pareço um contabilista a falar. Permitiu-me acabar de ler Não Sou Stiller, de Max Frisch, um grande romance, e começar Os Homens Não São Máquinas, do mesmo autor. Há muitas coisas que devia ter lido e sei que não li. O caso da obra de Max Frisch é pior. Até há pouco tempo eu nem sequer sabia que tinha o dever de a ler, pois ignorava-a por completo. Foi, já nem sei onde, uma referência a ele e a Hans Fallada que me alertou para a sua existência. Mal dormido, mas satisfeito, levantei-me cedo. Ida à farmácia e, depois, à estação da Rodoviária para que as netas tomassem o Expresso para Lisboa. De seguida, uma passagem por um supermercado – por aqui, há mais supermercados do que pessoas – para umas compras necessárias. A certa altura, ao olhar os clientes, fui atingido pela memória de um filme de Ettore Scola, cujo título em italiano é Brutti, sporchi e cattivi. Recuso-me à tradução portuguesa para diminuir o peso da culpa por ter feito tal associação. As pessoas que ali estavam não vivem num bairro de lata dos arredores de Roma. Provavelmente, tomam banho com regularidade suficiente, usam perfumes e têm bons carros, mas há nas suas expressões uma tal rudeza que não consegui evitar a analogia. Ainda não terão entrado na fase do policiamento dos gestos, do exercício da contenção, da sublimação da animalidade. Em muitos daqueles olhares existe o brilho vivaz da manha, mas ainda não a cintilação da inteligência e a ponderação da sabedoria. Vivem a fase que prepara essa grande metamorfose em que uma linhagem de gente rude dá lugar à beleza dos corpos e, talvez, mais adiante, à dos espíritos. Penso, ao olhar o entardecer, que o melhor seria evitar passar, a um sábado pela manhã, num sítio daqueles, onde o instinto do rebanho e a pulsão da massa conduzem as pessoas, a mim incluído.

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