quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Precipitação

Tem estado um belíssimo dia, frio, mas não muito, uma luz feita de cinza, que deixa cair sobre as ruas da cidade uma certa tristeza sonâmbula e a ventura da melancolia. Tudo fazia lembrar o Natal, esse Natal que se imagina com um tempo quase gélido e de neve nas terras altas, o que não será o caso por aqui. O relógio parou e tive de ir a uma relojoaria para que lhe mudassem a pilha. O tempo que tinha parado há dois dias voltou a pôr-se em marcha. Não sei se esta decisão de reactivar o tempo terá sido sensata. Talvez fosse uma oportunidade de suspender o tempo ou, pelo menos, fixá-lo naquele instante em que os ponteiros se imobilizaram. Quando saí da relojoaria senti uma leve sensação de culpa. Tornei a pôr o tempo a andar e restituí todos os seres à sua condição transitória e mortal, no caso dos seres que são vivos. Foi uma precipitação. Não fiz mais do que copiar a precipitação original de Eva e Adão, a qual nos tornou mortais. Fiz o mesmo ao precipitar-me para pôr o relógio a funcionar, não aproveitando a oportunidade que me foi dada para salvar o universo da sua irremediável perda. Como poderei eu ser um cavaleiro andante digno de ombrear com o Cid, El Campeador, com o rei Artur ou com Ricardo, Coração de Leão, se me precipito na hora crucial em que tudo se decide? Não posso, para meu desgosto. É possível que quem tece as linhas com que se compõe o fado de cada um se tenha precipitado e, por isso, ter-se-á esquecido de pôr no meu destino essa gloriosa tarefa de derrotar o tempo, matando Cronos pelo simples acto de me recusar a pôr uma pilha miserável num relógio ainda mais miserável. É a hora do crepúsculo. Parece que acentua nos pacientes a tendência para a loucura. Vou para a janela ver chegar a noite.

Sem comentários:

Enviar um comentário