Já chegou a noite. A maior aventura que me aconteceu hoje foi almoçar um cozido à portuguesa em Campo de Ourique. Desesperados, com a hora de almoço bem atrasada, cinco pessoas esfomeadas, encontram uma mesa, num restaurante ao acaso, sem marcação. Um milagre para um sábado, e que sábado, por aquelas paragens. Depressa percebi a inteligência daquela escolha. Era possível compor o cozido, excluindo umas coisas e reforçando outras. Por exemplo, excluir o frango ou o nabo e a cenoura. Isto de fazer compras a um sábado, véspera da véspera do dia de Natal, não lembra ao demónio, mas foi o que aconteceu. Não se tratava de presentes, mas de bebidas e comidas, com uma visita a uma grande superfície. Aproveitei, o estar ali pelo Jardim da Parada e fui à Ler, a livraria do bairro, sítio que, sempre que posso, visito, com pouco proveito para a minha conta bancária. Dos presentes que decidi oferecer-me consta os Poemas 1934-1961 de Pedro Homem de Mello. Nem tudo o que escreveu é bom, mas é um poeta que continua a merecer uma leitura atenta. O poema “Bailado” começa com a seguinte quadra: Quebrada pela cintura / Abre em dois frutos o peito. E o seu calcanhar procura / A ponta do pé direito. E não resisto a continuar, com mais duas quadras: O vento dá-lhe na cara, /Escondida pelo lenço. / E o luar, que a decepara, / Deixa-lhe o busto suspenso… // Os olhos, como hei-de vê-los, / Se os desejos, menos vãos, / Morrem só porque os cabelos / Nos deixam sombras nas mãos? E para o poema aqui jazer completo, fica a quadra final: Indizível, mas perfeito / Indício de formusura! / Abre em dois frutos o peito, / Quebrada pela cintura. Fez a Assírio & Alvim muito bem trazer de volta a poesia de Homem de Mello. Faltará um segundo volume, com a obra que vai de 1964 a 1979. O poeta morreu em 1984. Reparei, na livraria, que estão a ser republicados autores que estavam semi-esquecidos. Por exemplo, Fernando Namora, Alves Redol ou Augusto Abelaira. Carlos de Oliveira continua a ter leitores, bem como José Cardoso Pires ou Agustina Bessa-Luís. Além da obra poética de Homem de Mello, aventurei-me a comprar um romance de Jaime Nogueira Pinto, Os Passageiros da Sombra, e ainda A Justiça de Yerney, do esloveno Ivan Cankar e um livro de contos de Barnard Malamud, com um título de um realismo atroz, Primeiro os Idiotas. Para memória futuro, os livros foram comprados antes do cozido. O resultado de tudo isto foi voltar para o meu recanto na pequena província onde arrasto os meus dias, presos à pequenez de todas as coisas pequenas, as quais têm exactamente a mesma dimensão que as grandes, o que muda são os olhos que as observam.
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