sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Autenticidade

No Público de hoje há uma entrevista ao poeta Manuel de Freitas. A certa altura ele diz É possível que o Quim Barreiros seja tão autêntico como o Morton Feldman. A autenticidade é fundamental, em suma, mas tudo depende do modo como se declara esteticamente. A autenticidade é fundamental para quê, pergunto-me de imediato. O vocábulo autenticidade encerra em si referências a três dimensões semânticas. Uma primeira está ligada ao direito, aquilo que está conforme à lei e, ainda, aquilo, uma obra, que pertence ao autor a quem é atribuída. Uma segunda dimensão é de natureza epistémica e diz respeito ao problema da verdade. Na terceira dimensão, fala a voz da moral, a autenticidade como sinceridade. A autenticidade é, então, uma categoria filosófica ligada ao direito, ao conhecimento e à moral, mas será ela uma categoria artística? Para Lev Tolstoi, a sinceridade é fundamental na obra de arte, mas ele já tinha dobrado a sua concepção estética à moral. Imagina-se muitas vezes que certas obras de arte trazem consigo os elementos que permitirão reconhecer uma certa autenticidade a que chamaríamos artística. Se nos perguntamos o que será essa autenticidade, apenas nos deparamos com categorias de autenticidade que acabam por se acomodar ou no direito, ou na epistemologia ou na moral. É plausível pensar que a arte está para além – ou para aquém – da querela entre a autenticidade e a inautenticidade e, sendo assim, a autenticidade nada terá que ver com a arte. Podemos mesmo dar um passo em frente e dizer que toda a obra de arte é-o na medida em que se emancipa da sua autenticidade. Na raiz da palavra autenticidade está autêntico. Este deriva do latino authenticus. Por seu turno, o vocábulo latino traduz o grego antigo αὐθεντικός (authentikós, original, genuíno, principal), que, por sua vez deriva αὐθέντης (authéntēs, o que age por sua própria autoridade, o que realiza, governante). Todas estas acepções têm a sua origem αὐτός (autóssi-mesmo). O que é surpreendente na obra de arte é que ela se liberta do seu autor. A Guernica, de Picasso, ou Os Maias, de Eça de Queirós, estão para além do si-mesmo que é apresentado como seu autor, são mundos que, após terem sido criados, são abandonados aos que deles se aproximam. A criação desses mundos é uma fabricação, o exercício de uma indústria onde impera o artifício. O que marca a obra de arte é sua artificialidade, a sua pura ficcionalidade, tudo categorias em conflito com a autenticidade.

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