Distraí-me e entalei um dedo no quebra-nozes. Foi o segundo incidente no espaço de minutos. O primeiro foi a recusa do dito quebra-nozes em quebrar uma noz. Aliás, um fruto pequeno, quase miserável, mas de casca resistente. Teve de ser subjugada à martelada, não com um martelo. Usei o próprio quebra-nozes, agora em função de martelo. Talvez o instrumento se tenha sentido humilhado pelo uso contra-natura e, vendo-me distraído, abocanhou-me um dedo. Faz parte da ingenuidade dos seres humanos despir os objectos materiais de vontade. Não me parece plausível a ideia de lhes negar um querer, pois eles querem muitas vezes aquilo que nós não queremos e submetem-nos ao querer deles. Imaginemos um carro que se recusa a trabalhar, enquanto nós, os seus proprietários zelosos, estamos cheios de pressa para um compromisso inadiável ou para o encontro da nossa vida. Isto não é um querer? Claro que a inocência humana designa por avaria aquilo que é um acto da vontade e, para mais se iludir, julga o caso como um acidente mecânico ou electrónico, ou qualquer outra coisa que desculpe a maldade do dispositivo. Não consigo compreender o alvoroço que anda aí por causa de podermos vir a ser dominados pela inteligência artificial ou por robôs. Se já somos dominados pelas máquinas a que não atribuímos nem inteligência nem vontade, o que poderemos esperar de dispositivos a quem demos inteligência e mesmo vontade? Retornando ao caso do quebra-nozes, tenho de considerar que foi benévolo comigo, apesar da maldade que lhe vejo no rosto. O dedo não sofreu grande coisa, mas imagino que foi um aviso. Da próxima vez que quiser martelar uma noz renitente vou buscar um martelo. É uma questão de adequação entre o objecto e a finalidade.
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