quinta-feira, 6 de junho de 2024

Tornar-se outro

A certa altura, num livro, leio Esta é uma opinião com a qual concordamos menos agora do que em tempos concordámos. Fico a meditar a frase, pois também eu reconheço que há opiniões com as quais concordo menos no presente do que concordei no passado. Há opiniões a que dava o meu pleno assentimento e, hoje, parecem-me repelentes. O inverso também é verdade. Poderia dizer, não poucas vezes, esta é uma opinião com a qual concordo mais agora do que em tempos concordei. Uma das hipóteses é que eu não seja aquele que no passado tinha opiniões tão diferentes. Eu não me arrependo das minhas opiniões do passado, mas torno-me outro. Tornar-se outro é uma mudança bem mais radical do que o arrependimento ou contrição. Quem se arrepende ou faz um acto de contrição, permanece ainda o mesmo, tomado pelo remorso, seja moral ou cognitivo. Quem se torna outro faz uma mudança ontológica, muda de natureza. Quando o Marquês de Gualdrasco e Villareggio, de nome Cesare Beccaria, escreve o seu famoso tratado Dos delitos e das penas, publicado em 1764, pensa que a função da pena é, também, reabilitar o infractor. Há uma crença na regeneração de uma bondade original que o delito teria posto em causa. A pena serve para restabelecer uma conexão com um passado. O importante seria, porém, que o delituoso se tornasse outro, que deixasse de ser quem era e se tornasse outro, alguém para quem cometer um delito seria inaceitável. Está, por aqui, um típico dia de Junho, daqueles que prometem uma pequena tempestade, mas que não cumpre. Nem sempre é assim. Por vezes, dá direito a queda de granizo, o que deixa um rasto de desgraça pelos campos. Nesse caso, é um Junho delituoso. 

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Imaginação forte

Montaigne refere Cícero como autor da ideia de que filosofar é aprender a morrer. A razão estaria no facto de que o estudo e a contemplação filosóficos arrastam, até certo ponto, a alma para fora do corpo, mantendo-a ocupada num para lá da dimensão física. Tanto quanto me recordo, a ideia provém de Platão. No Fédon, Sócrates diz, cito de memória, que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. Só espero que a memória não seja imaginada. Há muito que não visito esse texto de Platão. O Fédon trata do problema da imortalidade da alma e é situado no dia em que Sócrates morre. Platão era um escritor de grandes recursos e não sem ironia. Logo no início do diálogo, quando Fédon, um dos amigos que acompanha Sócrates nas suas últimas horas, descreve a alguém essas horas e nomeia quem estava junto do velho mestre, diz que Platão parece que não estava. Ora, Platão é o autor do diálogo e Fédon é o narrador. Portanto, seria natural que o autor soubesse se tinha ou não estado naquele encontro, mas a veia literária de Platão arrastou-o para a ficção. Esta inclinação ficcional não é compatível com o que o mesmo Platão defende na República, quando afirma que os poetas, por serem dados à ficção, à mentira, devem ser expulsos de uma comunidade política bem ordenada. Por muito que o filósofo Platão se revoltasse contra a literatura, o poeta e ficcionista Platão não se poupava em deixar traços ficcionais nos diálogos filosóficos. Platão não foi um caso idêntico a Fernando Pessoa, mas havia nele, pelo menos, dois Platões. O filósofo que rasgou, por ordem de Sócrates, as tragédias que escrevera em jovem e o poeta que aproveitava os diálogos, com cerradas estruturas lógicas, para criar ficções poéticas. Comecei com Montaigne e acabei em Platão. Podia ter acabado com o primeiro quando diz Uma imaginação forte cria os acontecimentos. Talvez fosse por isso, pela força da imaginação, que Platão acabava sempre por sucumbir ao poeta que havia nele.

terça-feira, 4 de junho de 2024

No princípio

Ontem, contei uma história acerca do chatbot que uso. Ele chegou à conclusão de que eu me interesso por linguística e história da língua portuguesa a partir de um mero indício. Contemos a história a partir do princípio. E no princípio era o verbo atraiçoado. Deixando-me de enigmas. Aborrece-me que ele me responda em brasileiro, sendo eu português. Não me cai bem ver fenômenos no lugar de fenómenos. Irrita-me. Passei a pedir-lhe para me dar as respostas em português de Portugal. A certa altura, refinei o pedido, e passei a pedir respostas em português de Portugal, anterior ao AO-90, isto é, ao taralhouco acordo ortográfico de 1990, que decidiu castrar as palavras das suas consoantes mudas. Daqui o chatbot, na sua generosidade, achou que me interessava por aqueles disciplinas, o que não é o caso. Também extraiu a conclusão de que eu sou um fiel tradicionalista, visto querer escrever com uma variante do português que ele deve considerar arcaica. É assim que se criam os boatos e se lança sobre as pessoas os mais terríveis labéus. Serei eu um tradicionalista? Ora, ora, eu que cultivei as vanguardas, sou agora manchado com semelhante epíteto. Bem, o melhor é pensar no assunto. Apesar de ele, chatbot, afirmar que reconhece o português anterior ao AO-90, tem um problema com as consoantes mudas e, por norma, rasura-as. Já o admoestei, mas ele fez orelhas moucas. Temo, mas temo na verdade, que as consoantes mudas tenham os dias contados, mas nisso são como todos nós. O corrector gramatical do Word não gostou da expressão tenham os dias contados. Propôs, no seu lugar, estejam a acabar. É um corrector que se leva demasiado a sério e quer todos os textos livres de chavões. Não percebe ele que o chavão, para este narrador, é como pão para a boca.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Adeus, dr. Freud

Fosse eu um modelo de linguagem da inteligência artificial, e tudo seria mais fácil. Bastava acertar no prompt e tinham um texto debitado em poucos segundos. Isto levou-me a uma experiência com o meu chatbot preferido. Pedi-lhe, tendo em conta as minhas interacções com ele, que fizesse um perfil meu. Não se coibiu e, em pouco segundos, disse-me que eu tinha interesses em linguística, história da língua portuguesa, tecnologia e inteligência artificial. Afirmou que eu usava um estilo de comunicação formal, preciso e cuidadoso e que me preocupava com o conhecimento e valorizava a tradição (uma acusação de conservadorismo). Por fim, não se esqueceu de me dizer que eu, este narrador sem nome, era reflexivo, dado aos detalhes (isto é, um chato), curioso e comprometido (na verdade, sou casado e não apenas comprometido; esta é uma piada sem graça, mas cada um tem o talento que tem). Este repertório das minhas hipotéticas qualidades alertou-me para uma coisa. Se alguma vez precisar de um psicanalista, o que começa a ser tarde, o melhor é recorrer ao meu chatbot. Certamente que me interpretará os sonhos, fará associação livre e me ajudará na autodescoberta, levando-me à cena primitiva que estará recalcada no fundo sem fundo do meu inconsciente. Eu não sou um modelo de linguagem, não consigo ter a prontidão discursiva de um desses modelos, mas também sei, descobri-o agora, que, se precisar de me auto-analisar, já sei a que porta vou bater. Adeus, dr. Freud.

domingo, 2 de junho de 2024

Distinguir os dias da semana

O primeiro domingo de Junho deu continuidade ao primeiro sábado do mesmo mês, coisa que nem sempre acontece. Não me estava a referir, todavia, aos acidentes do calendário, mas à sociabilidade, à sociabilidade deste narrador, que continuou em alta com um almoço de aniversário. Deixemos as consequências dietéticas do evento de lado e concentremo-nos num assunto que me preocupa. Perguntei aos dois membros de um casal, ambos reformados há tempos, se distinguiam com clareza os dias da semana, se sabiam que estavam num sábado ou numa segunda-feira. Reconheceram ambos que essa distinção se foi apagando. Não está completamente rasurada, mas muito diminuída. Isso confirmou as minhas suspeitas. A distinção dos dias da semana só se mantém porque os seres humanos ainda não se libertaram da necessidade de trabalhar. Quando todos os dias são de descanso, é inútil saber se hoje é domingo ou quarta-feira. Quem quer saber? Isto ainda é mais acentuado num mundo onde a religião, com o ritmo das suas festividades, se tornou, mesmo para os crentes, um assunto secundário na existência. Agora, vou preparar-me para enfrentar os 35 graus que me esperam lá no sítio onde continuo a distinguir os domingos das quartas-feiras.

sábado, 1 de junho de 2024

Sociabilidades

Não há inimigo maior das boas relações com a balança e a nutricionista do que a sociabilidade. Ser sociável implica um conjunto de rituais que acabam por fomentar comportamentos desviantes da boa forma e dos cuidados com a saúde. O almoço de hoje prolongou-se pelas horas dentro. Ora, mais do que aquilo que se come é o que se bebe. Mesmo que lento seja o ritmo do consumo, com o passar das horas vai-se acumulando o álcool e, com ele, as calorias, o peso e os efeitos nefastos na relação com a balança e, por extensão, com a pobre rapariga que acha ter por missão pôr-me de boa saúde. Enfim, ela não acha, mas faz o papel dela e eu finjo que acredito que ela crê ter essa missão. Seja como for, ainda há tempo para recuperar. Talvez por um sentimento de culpa, fiz uma belíssima caminhada, acumulei pontos cardio, passos e quilómetros. O pior é que amanhã tenho uma festa de aniversário e as tentações podem ser mais fortes do que o espírito de missão. Aliás, espírito de missão foi coisa que não me coube nos dotes recebidos, se é que recebi algum. Em contrapartida, fui dotado com uma boa dose de quedas em tentação. Acho que não vou jantar. Não por autopunição, mas porque me falece o apetite. Amanhã será outro dia, o segundo de Junho, mês que começou atravessado.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Uma conspiração

Acabei de fazer uma viagem de treze graus. Saí do sítio onde me acolho com uma temperatura de 36o e cheguei a onde me encontro com uma temperatura de 23o. Aliás, a viagem tanto em tempo como em quilómetros é curta para os dias de hoje. Maio acaba enlouquecido e apostado em enlouquecer quem tem de penar pelos sítios onde a brisa marítima se recusa a chegar. Daqui a pouco, irei caminhar na amenidade da temperatura. Um mistério assola a minha existência. Um dos dispositivos de leitura que tenho – um eReader – está com uma inclinação exagerada para se apagar. Carrego-o e ao fim de um dia dou com ele sem bateria. Já investiguei possíveis causas, eliminei-as, passei a cumprir as orientações fornecidas, mas o objecto não está de acordo. Talvez seja dotado de vontade, de livre-arbítrio e tome a decisão de se descarregar só para me confundir. Esta é uma hipótese que se deve levar a sério. Até hoje temos lidado com os objectos como se eles fossem meros mecanismos fabricados pelo homem e limitados na sua acção a cumprir as instruções que o seu criador lhes dá. Talvez esta visão das coisas esteja errada e sempre que os seres humanos criam um utensílio, seja para o que for, criam um ser que possui vontade própria e conspira para nos contrariar. Quem nunca teve uma avaria no carro? Quem nunca chegou a casa e deparou com electrodoméstico que se recusa a trabalhar? Ninguém. Dizer que isso é um acidente mecânico é uma explicação cândida, uma candura que os objectos aproveitam para frustrar os proprietários e divertirem-se à sua custa. Diversão, não poucas vezes, muito pouco em conta. Os filósofos pré-socráticos, os de Mileto, estavam convencidos de que tudo no mundo estava dotado de vida e de alma, digamos assim. Era uma visão de homens experimentados e que não se deixavam enganar pelas coisas que se fingiam mortas. Nós, homens contemporâneos, perdemos essa capacidade de compreender as coisas e somos, a cada instante, zombados por seres que se recusam a cumprir as tarefas para os quais os destinámos. Talvez estejam a congeminar uma insurreição. Como se vê, o tempo fresco não me é mais favorável ao pensamento do que o calor infernal.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Mediador comunicacional

Hoje é feriado. Talvez se devesse dizer dia santo de guarda, mas não sei se esta expressão, ouvida há muito, faz sentido. A designação do feriado também é equívoca. Dia do Corpo de Deus. Ora, a definição de Deus implica que, pela sua imaterialidade, Ele não tenha corpo. A designação correcta deveria ser Dia do Corpo de Cristo. Contudo, apesar da natureza religiosa do feriado, não estou capaz de entrar numa meditação teológica, para a qual, além do apetite, me falta a competência. Os dias de calor já chegaram aqui. A temperatura ultrapassou, de modo generoso, os trinta graus. Isto é prova de que nem sempre a generosidade é uma coisa boa. O que se anuncia, porém, é pior. Esta subida de temperatura tem, apesar de tudo, uma vantagem, a de me oferecer motivo para estes textos, segundo a velha máxima: quando não se tem nada para dizer, fala-se do tempo. A máxima pretendia sublinhar a falta de assunto, mas, sem estar no seu horizonte, ela faz-nos uma revelação acerca da essência do tempo, entendido como clima e não como duração. Ele é um mediador comunicacional. Imaginemos que um homem e uma mulher se encontram. A falta de assunto, devido a uma timidez congénita e dupla, pode matar o futuro daquele encontro. Então falam de nuvens, do frio ou do calor, se chove ou faz sol. A partir daí aferem gostos e, sem darem por isso, passa a haver um futuro, pelo menos possível, para aquele par que se encontrou e estava preso numa incomunicabilidade estrutural. Além de mediador da comunicação, o tempo é um aferidor de gostos. Portanto, nunca devemos pensar que falar do tempo é coisa inócua. Não é. Agora, vou ver se está a chover.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Homens e ilhas

Lê-se Próximo, apenas o interior; o demais está afastado, e pensa-se, talvez, no próprio homem, onde a coisa mais próxima de si é a sua interioridade e o resto está, irremediavelmente, afastado. No entanto, o verso citado, é o início do terceiro poema de um pequeno ciclo, com três composições, denominado A Ilha – Mar do Norte, de Rainer Maria Rilke. O poeta escreve não sobre os homens, mas sobre uma ilha, e, como se sabe, nenhum homem é uma ilha. Isto foi escrito muito antes por John Donne, um poeta inglês que nasceu 303 anos antes de Rilke. O poema de Donne acaba com três versos muito conhecidos: E, portanto, não procures saber / Por quem o sino dobra. / Ele dobra por ti. Para o poeta inglês, cada um é parte do todo, um elemento, A morte de cada homem diminui-me /Pois sou parte da humanidade. Que o poeta tivesse de o afirmar significa que essa comunhão entre todos os homens estaria já em processo de dissolução, o indivíduo nascia na consciência europeia, e o indivíduo é aquele que, ao escutar o dobrar de um sino, sabe que não é por ele que o sino dobra. Rilke pertence já a um mundo em que a ideia de uma pertença radical ao fundo da espécie estava apagada. A morte do outro não é a minha morte, pois a humanidade é, agora, uma mera abstracção, fundada na soma de indivíduos. Talvez o poema de Rilke sobre uma ilha seja, afinal, um poema sobre o indivíduo, pois ele pertence já a um mundo em que cada homem é uma ilha.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

O verdadeiro conservador

Hoje o dia prolongou-se em afazeres diversos, de tal maneira que cheguei tarde a casa. Pior, as andanças toldaram-me a imaginação, o dia não foi propício a aventuras, a não ser a avaria de uma persiana, logo a do quarto. A luz entrou por ele dentro, mal se fez presente por aqui. A empresa garantiu que vem tratar do assunto, mas só amanhã. Vão ser dois dias a acordar mais cedo. Podia mudar de quarto. É verdade, mas há velhos hábitos que é melhor não os ofender. Mudar de quarto implica mudar de cama, coisa para que me falta o apetite. Descobri que tinha uma costela conservadora quando percebi que, por exemplo, num café, tinha um lugar predilecto e se ele estava ocupado, sentia em mim uma contrariedade. Depois, deixei de ir a cafés. O conservadorismo, ao contrário de se diz por aí, não é uma atitude geral perante o mundo, nem uma ideologia política, mas uma certa relação com o espaço. Um conservador, um dos autênticos, preocupa-se apenas e só em preservar os espaços. Assegurar que eles evitam a rasura do tempo, esse inimigo visceral do espaço. Um conservador sabe que não pode parar o tempo, então trata de imobilizar os espaços e de se imobilizar neles. Por isso, não é um cultor da viagem. As pessoas gostam de viajar e adoram contar as suas viagens, de tal modo que um conservador pensa que as pessoas viajam apenas por amor ao momento em que contam a viagem. Um conservador espacial, como este narrador, quando viaja, fá-lo contrariado e, se instado a falar sobre a viagem, diz que teve de ir a um certo sítio, dando a entender que o fez contrariado, como se cumprisse um dever. Por isso, prefiro ser incomodado pela luz matinal a mudar de sítio para dormir. Não seria uma grande viagem, mas não deixaria de ser uma infidelidade espacial.

domingo, 26 de maio de 2024

Herói e anti-herói

Hoje é domingo. Uma constatação prosaica e ao alcance da generalidade das pessoas que sabem usar um calendário ou conhecem a designação dos dias da semana e ainda não perderam a conexão com a realidade. O que interessa tudo isso? Eis uma pergunta inútil. Não interessa para nada, será a resposta. Contudo, a vida – pelo menos, a deste narrador – é feita de constatações prosaicas. Em tempos, poderia ser feita de grandes palavras e grandes actos, o que constituiria uma gesta, mas faltou-lhe o talento para ser herói. Ser herói não é uma questão de coragem, mas de talento. Talento para escolher as ocasiões que fazem o herói. Não é apenas o ladrão que produzido pela ocasião, mas também o herói. Os heróis das gestas medievais foram-no porque o mercado das ocasiões para a heroicidade era enorme. Havia muito mais oferta do que procura, por isso, ser herói era barato. Nos decadentes dias em que nos cabe viver, a oferta de ocasiões para a heroicidade diminuiu drasticamente e o preço a pagar pelo título de herói é muito alto, tão alto que só os grandes multimilionários podem aspirar a essa condição, coisa a que, na verdade, não aspiram, deixam isso para uma multidão de descamisados sem eira nem beira. Aliás, o problema já se coloca há uns tempos, desde que na literatura começou a avultar, no lugar do herói, o anti-herói. Este não estava para pagar o alto preço para encontrar uma ocasião que dele fizesse um herói e decidia tornar-se no contrário, o que era gratuito. Portanto, como se pode ver, a transição, na literatura, de uma narrativa centrada em heróis para uma fundada em anti-heróis deve-se a uma questão económica. Ora, esta deriva sobre os mecanismos económicos do heroísmo serviu para justificar por que razão este narrador não é um herói. Contudo, deixa por explicar por que não é ele um anti-herói, mas isso é assunto que poderá vir, se vier, à colação no futuro, caso exista tempo, dele faça parte o futuro e o narrador tenha ainda um lugar neste futuro.

sábado, 25 de maio de 2024

O verdadeiro niilismo

Comecei o dia com um encontro auspicioso com a balança. Fiz-lhe uma reverência, inclinei a cabeça, disse-lhe bom-dia. Ela encheu-se de salamaleques e devolveu-me um peso aceitável. Não, mais do que aceitável, promissor. Isso deu-me ânimo e tenho estado, neste dia de descanso, entretido com coisas úteis, embora, nesta vida, haja poucas coisas que são verdadeiramente úteis, e sobre elas nunca conseguiremos chegar a um consenso. O que é útil e decisivo para uns, será risível para outros. Isto é uma prova de que há qualquer coisa na sociedade que está errada. Diz-se que todas as sociedades têm as suas tábuas de valores. O drama é que nunca vi essas tábuas e aquilo que eu valorizo, outros nem reconhecerão a existência. Uma possibilidade é que todas as sociedades tenham uma tábua de valores menos uma. Precisamente, aquela a que pertenço. Imagino que seja um azar ter nascido na única sociedade que não tem uma tábua de valores, embora não se chegue a acordo se não tem nenhuma ou se tem tantas que parece não ter nenhuma. Podemos formar, a partir do que se escreveu, uma taxionomia societária – que palavra mais desgraçada – relativa à existência de tábuas de valores. Uma taxionomia possível, mas não real, note-se. Temos sociedades monistas, aquelas que só têm uma tábua de valores. Sociedades dualistas, as que têm duas tábuas de valores. Sociedades pluralistas, as que usam pelo menos três tábuas de valores. Por fim, sociedades niilistas, as que não dispõem de tábuas de valores. Nestas, cabe a sociedade a que pertenço. É uma sociedade que trocou a tábua de valores pelas tábuas de enchidos e pelas tábuas de queijos. Caí na pior das sociedades possíveis, pois as suas tábuas são inimigas da minha relação com a balança. Ora, como quero estar de boas relações com a balança, não posso orientar a minha vida pelas tábuas que orientam e dão sentido à sociedade a que pertenço. Isto explica muito do que escrevo, coisas sem sentido, coisas vindas de uma mente que perdeu a orientação, pois sente-se compelida a rejeitar as tábuas que guiam a sua sociedade. Se se perguntar o que é o niilismo, pode-se, com segurança, responder que é uma forma de vida que trocou as tábuas de valores por tábuas de enchidos e queijos. Esse é o verdadeiro niilismo, que nem Nietzsche conheceu.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Nunca falhamos

O dia já esteve quente, permitindo aquela experiência de alívio e pacificação que se dá quando se vem do calor e se chega a casa. As orquídeas estão belíssimas, mas há ainda algumas por florescer, serôdias. Talvez uma ou outra não o faça. De uma das janelas avisto dois jacarandás. Um está coberto por um manto lilás azulado, mas o outro falhou o grande espectáculo. Aliás, todos os anos é assim. Terá sido plantado em lugar inapropriado. Isso também acontece a muita gente. Plantada em lugar que não é próprio, falha o grande momento. O que será para um ser humano o grande momento? É a vida. Por longa que seja, não passa de um momento e não haverá momento maior para alguém do que esse. Daqui a uma semana, Maio estará no seu último dia. Mais umas horas e evaporar-se-á, não para atmosfera, mas para o nada, que é o sítio de onde vem e para o vai o tempo. O tempo é a estrada que liga os vários – os infinitos – nadas. É por ela que vamos e, por estranho que pareça, nunca nos enganamos no caminho. Nunca falhamos o nada.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Acumulações

Os dias continuam a crescer. A temperatura, agora, também aumenta. Nesta corrida, os dias vão perder. Vão cessar de aumentar mais rapidamente do que a temperatura. Eis uma meditação que não serve a ninguém. É assim que concebo a minha sabedoria. Um conjunto de informações inócuas, cuja finalidade não se descortina. Fui acumulando informação atrás de informação. Elas, as informações, em vez de se integrarem num todo harmonioso, acumularam-se num armazém sem ordem. Preciso de uma, então lanço a mão ao armazém e uso a primeira que me aparece. Basta olhar para estes textos. São fruto de lançar a mão e apanhar aquilo que aparece em primeiro lugar. O que acontece comigo, imagino que acontecerá com muitas outras pessoas, mas não tenho a certeza. Nunca fui outra pessoa. Já ser esta é uma tarefa hercúlea, quanto fará ser esta e outra. Talvez Fernando Pessoa, ao ser tantos, fosse, na realidade, um Hércules. Apesar disso, morreu cedo. Ser tantos pesou-lhe na alma e deu-lhe cabo do corpo. Se Pessoa vivesse hoje, iria ao ginásio. O exercício permitir-lhe-ia suportar-se a si e aos outos sis que ele era e prolongar a vida, para acumular mais sis. Ele acumulou sis, eu acumulo informações. São mais leves e, com o passar do tempo, elas vão desaparecendo do armazém. Não sei se elas são roubadas ou se saem pelo próprio pé. Conformo-me, pois devemos evitar a acumulação.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Profecias e exorcismos

Diante de mim, está pousado um romance que tem a guerra por pano de fundo. Trata-se de Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov. O facto de, nos últimos tempos, estar a deparar-me com romances que têm esse horizonte na sua narrativa, quererá o dizer o quê? Premonição ou esconjuro? Será aviso de profeta ou acto de exorcista? Sou um mero narrador, um ser virtual, submetido ao arbítrio do autor, um espírito racional e educado nos valores do Iluminismo. Foi assim que o autor me concebeu. Como tal, não tenho inclinação nem para profeta nem para exorcista. Contudo, não era de mim que falava, mas dessa disposição das coisas que teima em colocar perante os meus olhos esse tipo de literatura. Se há uma disposição, então terá de haver alguém que tenha essa disposição, terá de existir aquele que dispõe. Será ele, ou ela, que é profeta ou esconjurador e utiliza a literatura como instrumento para cumprir a sua missão. Não é indiferente se se está perante a acção de um profeta ou de um exorcista. Se for um profeta, ainda nos encontramos na fase da anunciação de um mal que poderá ocorrer no futuro. Se for um exorcista, então estamos já em plena vigência do mal e esta comunicação através de obras romanescas é um ritual usado para afugentar a malignidade que ainda por aí à solta. É o que me ocorre por hoje, dia em que não me ocorreu nada.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Inflamações

Desde sempre, é um sempre humano, que sou acometido por dores nas pernas, cuja localização vai variando de modo aleatório. Na infância e adolescência, os médicos atribuíam-nas ao crescimento. Quando deixei de crescer, elas persistiram, uma prova de resiliência, delas e não minha, que desprezo a palavra. Reparei, quando estava na casa dos vinte anos, que as dores surgiam em alturas de variação do tempo, de indecisão entre estações. Depois, passavam. Isto coloca-me um problema epistemológico. Há uma correlação entre a mudança do tempo e as dores ou haverá uma relação causal? Prefiro a relação causal, mesmo que seja indirecta. Por exemplo, a instabilidade do clima inibe qualquer coisa no meu cérebro, e este fica incapaz de evitar a manifestação de certas dores. Ou, então, será ele próprio, o cérebro, em protesto consta a instabilidade, que ordena as dores. Vale-me as dores serem benévolas. Tratam-se, ou mascaram-se, com pouca coisa e desaparecem mal o tempo se estabiliza, não havendo nelas nenhuma inclinação para tempo frio ou quente. O que elas querem, para não me atormentar, é de estabilidade. Ora, a vida é instabilidade, mudança, alteração. Daí se pode concluir que a dor faz parte da vida, sendo dela uma condição necessária, embora não suficiente. Lembrei-me de tudo isto porque o tempo está instável. Talvez logo à noite tenha de tomar um analgésico ou um anti-inflamatório. Presumo que essas dores provêm de pequenas inflamações. Alguma coisa se inflama ainda em mim.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Um acto de resistência

Uma experiência anacrónica. A anacronia, no caso, não é muito grande. Passou-se ontem. Um acaso levou-me ao lugar onde nasci, uma aldeia aqui perto. Parei o carro e fiquei à conversa com uma prima. A certa altura, vejo pessoas a espalharem verdura na estrada. Ia haver procissão. Faz sentido, deve ser domingo de Pentecostes e como a terra festeja o Espírito Santo, há procissão, pensei, enquanto ia conversando sobre coisas com décadas. Aproveitei mesmo para lhe desfazer uma ilusão. Estava, a minha prima, convencida de que eu tinha nascido em Lisboa. Uma falsidade, pois, apesar dos meus pais viverem na capital, eu nasci ali. Ora, o que me perturbou não foi a falsa crença de uma prima que não via há décadas, mas a procissão. Entre aquela que vi ontem e as que desenterrei da memória, de uma memória muito recuada, havia uma diferença abissal. Por certo, na coreografia, mas, acima de tudo, no número de fiéis. Ontem, eram tão poucos os que seguiam atrás dos andores, do pároco e da banda filarmónica da aldeia, que olhei estupefacto e, eu que nunca fui numa procissão, quase tive vontade de ir naquela. Para fazer número ou talvez para me solidarizar com as memórias que tenho de grandes procissões, com as raparigas com tabuleiros à cabeça, ajudadas pelos namorados ou afiançados, ou lá o que eles eram, seguidos pelos homens com opa vermelha da confraria do Espírito Santo. Ontem não havia raparigas com tabuleiros à cabeça, nem namorados, nem confrades do Espírito Santo, para além de quase não haver pessoas. Depois, pensei que aquilo que eu estava a ver era um acto de resistência. Aquelas pessoas, conhecia uma ou outra, estavam em luta contra a rasura do tempo. Já não têm poder para erguer uma festa ao divino Espírito Santo, como as havia ali desde o século XVII, mas ainda saem à rua, levam os andores e põem a banda a tocar. Pode ser a luta mais inútil, mas lutar contra o tempo é o combate que merece a maior das admirações.

domingo, 19 de maio de 2024

Finais felizes e alucinações

Decidi, após a leitura de um certo romance, pedir a um chatbot para fazer um resumo da obra. Ele começou muito bem, mas a partir de certa altura passou a alucinar e reconstruiu a história em modo cor-de-rosa, que não é, propriamente, a cor com que acaba o romance. Há duas explicações, pelo menos, para esta situação. A primeira é que há certas versões não romanescas da história em que esta tem um final feliz e o chat decidiu compor o resumo. A outra é que o chat não gostou do fim da história dado pelo autor e decidiu reescrevê-lo, compô-lo, como se fosse o proprietário de uma editora que quisesse vender livros ao público e tivesse como mercado as pessoas que consomem finais felizes. A literatura – e não confundir literatura com ficção em livro – não tem especial inclinação para finais felizes, mas é plausível pensar que são muitos os editores que precisam de vender livros a corações em busca de consolação. Depois, fiz uma nova tentativa com outra obra. Tentei em dois chatbots diferentes. A resposta foi muito mais adequada. Como a obra é muito mais recente e não deu origem a mil interpretações, ambos os chatbots evitaram alucinações e limitaram-se a fazer um resumo genérico da obra. Já reparei que um deles alucina muito mais do que o outro. Há nele qualquer coisa que me perturba. Tenta compor a realidade, tornando-a mais de acordo com certo gosto que ele presume ser do público. As versões pagas, segundo me dizem, são mais fiáveis, mas ainda não me predispus a solicitar serviços pagos. Se quero resumos, faço-os eu, embora não saiba por que razão hei-de querer resumos das obras que leio.

sábado, 18 de maio de 2024

A melancolia da distância

Por curiosidade, foi ver os eventos históricos referentes ao dia 18 de Maio. Entre 1096 e 2018, catorze dos eventos elencados estão relacionados com a guerra. Este é o principal desporto do homo sapiens sapiens. Somos uma espécie duplamente sábia, mas aquilo em que somos, efectivamente sábios, é matarmo-nos uns aos outros. Por horrível que isso seja, não podemos dizer que tenha sido um problema para a espécie, pois esta colonizou todo o planeta e colocou-o sob a sua alçada. Imagino, agora que penso nisso, que a questão da guerra não seja uma questão moral, mas biológica. Assim como no processo evolutivo desenvolvemos a linguagem articulada e, posteriormente, a escrita, também desenvolvemos o poder de nos matarmos. Dois desenvolvimentos inerentes ao processo de adaptação ao meio. Eis um pensamento sombrio, mas que está de acordo com o dia. Tem estado, felizmente, um Maio pouco dado a exuberâncias estivais, fazendo mais lembrar um tempo de Semana Santa, embora esta ideia de que há um tempo, um clima, próprio da Semana Santa não passe de um estereótipo, o qual, penso, não ofenderá a Semana Santa, mas nunca se sabe. Quando se considera a nossa espécie, a partir da cadeira de um escritório, não é possível reprimir a melancolia. Entre aquilo que imaginamos que podíamos ser e aquilo que somos, há uma distância sem fim, talvez infinita. A melancolia vem da constatação dessa distância que vai do ideal ao real, como se diria outrora.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Os caminhos para Roma

Ainda não decidi se vou caminhar junto ao rio ou se fico por casa. Haverá, claro, outras alternativas, mas deixo-as de lado, pois seria fastidioso fazer a sua enumeração. Há quem creia, todavia, que nunca temos alternativas. Estas seriam ilusórias, pois só podíamos fazer aquilo que fizemos, embora tenhamos a capacidade de pensar que poderíamos ter feito outra coisa. Os defensores do não há possibilidades alternativas, desde Baruch Espinosa até a certos cientistas dos dias de hoje, crêem que tudo está determinado. Ora, o que não se consegue perceber é a necessidade de termos desenvolvido uma capacidade de pensar que nos diz que para ir a Roma se podem escolher múltiplos caminhos – aliás, todos, pois todos os caminhos vão dar a Roma – e, na verdade, só haver para nós um caminho para ir a Roma. O facto de termos desenvolvido a capacidade de encontrar vários caminhos e a de deliberarmos sobre qual devemos tomar choca com esse determinismo insuperável. Tenho uma tese que me parece promissora. A vida é um longo caminho de afastamento do condicionamento determinístico da matéria. Quanto mais complexa for uma forma de vida, mais ela tem capacidade de descobrir várias vias para chegar a Roma, isto é, a onde quer. A única coisa que, verdadeiramente, dá fôlego aos defensores do tudo está determinado é a impossibilidade de se retroceder no tempo e voltar a uma certa situação e, não mudando nada da situação original, tomar uma decisão diferente daquela que se tomou, isto é, ir a Roma por outro caminho. Escolhi um péssimo tema para hoje, mas ainda estou a tempo de escolher outro, o de falar sobre o estado do tempo e da exuberância que se desprende do friso das orquídeas. Talvez vá caminhar junto ao rio, se tiver companhia.