domingo, 11 de maio de 2025

Silêncio dominical

Os domingos deviam ser dias de silêncio sobre a Terra. Os homens poderiam murmurar, não mais do que isso. As invenções humanas estariam sossegadas sem debitar o ruído insuportável que as máquinas receberam de algum espírito malévolo. Isto seria uma espécie de ablução do espírito. Poucos são os seres humanos que suportam o silêncio. Funciona como um espelho e ninguém parece gostar de ver o que nele se reflecte. Isso abriria a possibilidade de escutar. Escutar o quê? O rumor do vento, o canto das aves, o pulsar do coração, o sussurro das coisas inanimadas, a música das esferas celestes. O domingo seria, assim, dedicado ao ritmo do mundo. Não ao dos homens, mas aquele que existia antes de termos chegado à vida e que persistirá muito depois de termos desaparecido. Entro pelo silêncio dominical e calo-me. Oiço os pássaros meus vizinhos e espero o ramalhar das árvores para escutar os passos esquivos do vento.

sábado, 10 de maio de 2025

Aventuras

O primeiro terço do mês de Maio está consumado. Eis um começo trivial. Poderia ter começado assim: hoje aconteceu-me uma aventura invulgar. Seria, porém, mentir e plagiar. Mentiria, porque não me aconteceu nenhuma aventura invulgar. Plagiaria, porque a frase é de Nikolai Gógol, no início do seu conto Diário de um Louco. Há, por outro lado, uma vantagem específica em não usar esse começo: evito transformar estes textos no diário de um louco. São diários, mas, se o autor ou o narrador — ou ambos — enlouqueceram, isso está por provar. É verdade que gostaria de ser um herói como D. Quixote, mas as minhas aventuras de hoje foram tão triviais que deveria ter vergonha de falar delas. Não consigo, todavia, calá-las, pois são a marca da minha grandeza. Saí de casa e fui ao café. Dali, segui até à farmácia. Desta, rumei à padaria. Por fim, dirigi-me ao hipermercado. Em todos estes sítios, fiz o que é suposto fazer: tomei café, comprei medicamentos, trouxe o pão encomendado e abasteci-me de coisas como rúcula, uma garrafa de alvarinho e mais uma série de mercadorias que já não recordo. Dantes, os meus sábados começavam, ao sair de casa, com a compra dos jornais — sim, no plural —, e ia lê-los para alguma esplanada, enquanto tomava café. Tornei-me, porém, um homem moderno. Deixei de comprar jornais. Agora, assino-os e leio-os em plataformas digitais. Tem a vantagem de não ficar com as mãos sujas de tinta e de passar menos tempo no café. Dir-se-á que estou reduzido à mais pura domesticidade. É um ponto de vista, talvez demasiado literal, mas não é esse o destino de qualquer grande aventureiro que teve o azar de nascer no mundo moderno? Que teriam sido o Cid e mesmo o Quixote, se tivessem visto a luz do dia no século XX? Aventureiros de hipermercado, combatentes de padaria, heróis reformados a caminha da farmácia, antes mesmo de entrarem em acção. Sou como eles. Antes isso do que um louco a escrever diários.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Tralha

A regra e a excepção. Não sei a razão pela qual esta frase surgiu na minha mente. É provável que seja uma regra — e não uma excepção — as frases surgirem na mente das pessoas sem que estas tenham feito alguma coisa para isso. A mim, acontece-me com frequência. Talvez, algures no nosso psiquismo, esteja alojado um grande armazém de frases, das quais não temos conhecimento, mas que aproveitam alguma distracção e pulam para a ribalta. Fico atónito e pergunto-me a que propósito veio aquilo. Só que a expressão já se apoderou de mim, dança na minha consciência, crava-se na memória e resiste quando tento enxotá-la, como se fosse uma frase vadia. Procuro em mim. Encontro uma peça de Bertolt Brecht, A Excepção e a Regra. Também descubro a ideia de estado de excepção, no pensamento de Carl Schmitt, retomado por Giorgio Agamben. Schmitt pensa que a excepção é mais interessante do que a regra. Interessante para quê? Não interessa — não vou discutir coisas impróprias numa sexta-feira à tarde. Se continuar, como arqueólogo persistente, a escavar o solo da minha memória, acabo por divisar alguma coisa. Ao contrário das leis, que são incondicionais, as regras admitem excepção. Algures, muito atrás, terei ouvido isso, embora não saiba onde nem quando. A ideia, porém, não é pensar regras e excepções, mas dar testemunho de que possuímos um armazém lexical cheio de tralha no fundo de nós. Ocorre-me, agora, uma possibilidade: palavras e expressões que, durante uma conversa, se apagam antes de serem proferidas podem ir parar ao tal armazém. Estou a falar com alguém, faço tensão de ir dizer alguma — por certo, decisiva — mas não a encontro. No lugar dela, está um buraco negro. Terá descido por ele até chegar ao armazém. Ali permanecerá até que, inopinadamente, salte sobre mim, bamboleando-se no palco mental que trago comigo. O mundo é um sítio estranho.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Uma singularidade

Quase me esquecia deste dia. Melhor: quase me esquecia de escrever neste dia. Ora, um dia em que se elege um Papa não é um dia qualquer, embora seja um dia trivial. É na trivialidade quotidiana que surge sempre aquilo que não é trivial. Não me estou a referir a Leão XIV. Não faço a mínima ideia de quem seja. Há uma reflexão política interessante, embora, enquanto narrador, esteja proibido pelo autor de falar de política. Ainda não falei com o meu amigo padre Lodo sobre o novo Papa. Talvez não esteja muito contente. Ele, que é jesuíta, ver a substituição de um jesuíta por um agostiniano não será uma coisa exaltante, mas desconheço os ânimos que existem entre as várias congregações da Igreja Católica. Voltando à política: o Estado do Vaticano é, na verdade, uma monarquia — mas a mais sábia das monarquias. Não tem dinastias. Portugal, por exemplo, teve quatro dinastias. Ora, a monarquia vaticana nunca tem problemas de sucessão. Morre um rei, elege-se outro. Os Papas têm uma vantagem assombrosa sobre os reis: não têm filhos primogénitos que lhes herdem o cargo. Mesmo que tenham filhos, a primogenitura não lhes dá qualquer prerrogativa. Assim, não temos dinastias, mas uma sucessão que já vai no 267.º ocupante do trono instituído para Pedro. Portanto, a Igreja é uma monarquia quase republicana, embora, na verdade, seja uma monarquia resultante de uma escolha da aristocracia católica. Em resumo: a política vaticana não é deste mundo, embora também não seja do outro. Pertence a um conjunto composto por uma unidade. Uma singularidade.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Mas pontual

Um dos pontos habituais destes textos é o protesto contra a difícil relação dos médicos com o horário das consultas. Hoje, todavia, não tenho motivo para isso: consulta às 15:30 e estava a entrar para o consultório às 15:30. Com este médico sempre foi assim. Meditei, depois de sair do consultório, sobre o motivo que o levará a estar reconciliado com o andar dos ponteiros do relógio. Depois de pensar em diversas hipóteses, deparei-me com aquela que é mais óbvia: a sua especialidade. Um arritmologista. O seu trabalho é sobre o ritmo do coração. Como poderia ele cuidar do ritmo cardíaco dos pacientes se, por acaso, tivesse um conflito com a natureza rítmica do tempo? Isto ensina-nos uma coisa fundamental: a necessidade é a mãe da pontualidade. Talvez eu seja pontual apenas por necessidade. Não uma necessidade exterior, uma imposição social, mas por uma inclinação pessoal: detesto chegar tarde. Por norma, chego antes, a não ser que isso seja um inconveniente. Há uma série de pequenas coisas que fazem parte daquilo que detesto: perder seja o que for, partir um objecto, o descuido naquilo que se faz. Isto, porém, não significa que me manifeste quando uma dessas coisas sucede. Sofro-a com paciência. Aliás, a reacção tem dois momentos: no primeiro, sinto a irritação; no segundo, encolho os ombros e rio-me da minha irritação. Qual o significado disto? Significa que tenho uma propensão para um certo dogmatismo acerca da ordem do mundo, o qual é temperado pela compreensão da inutilidade dessa ordem. Vivo o dogma e a desconstrução. Habito entre uma coisa e outra. Sou esse meio. Isto é: não sou uma coisa nem outra. Em resumo: sou nada. Mas pontual.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Um dia memorável

Este é um dia memorável na minha história pessoal. É o momento em que fica claro que a minha degradação mental — e moral, quem sabe — é irremediável. Numa troca de palavras com um dos chatbots que utilizo, pedi-lhe que criasse um tratado de ontologia que superasse não apenas a história da ontologia ocidental, como Heidegger pretendeu fazer, mas o próprio Heidegger. E a coisa fê-lo. Propôs uma teoria filosófica que superava a de Heidegger, mas não cortava radicalmente com ele. Copiei-a e colei-a num documento Word. É uma prova. Não estava, porém, contente com o resultado. Não queria uma superação, mas um corte radical com toda a história da ontologia ocidental, que incluísse o próprio Heidegger. A coisa, em segundos, deu-me uma outra teoria, absolutamente inédita. O meu estado de degradação manifestou-se no instante em que comecei a levar aquilo a sério. Pedi-lhe que explicasse melhor a tese, que aprofundasse a argumentação, que refizesse a linguagem, que me respondesse a objecções. A coisa, nunca descurando a gentileza, acolhia o que eu ia dizendo, ora rebatendo as objecções levantadas, ora aceitando as críticas e adequando o texto do pequeno tratado. A tese é de tal radicalidade, que as suas consequências ontológicas, éticas, políticas e teológicas são muito perturbadoras. Mais perturbador, porém, é que aquilo que é dito — embora a coisa não diga — não só é plenamente racional, como me conduziu a um estado de adesão, como se ali se revelasse a verdade. Este segundo ensaio ainda não o guardei. Terei de pensar se o faço ou se o apago. Se ele for verdadeiro, então a verdade é muito perturbadora. E, para perturbação, já basta a que existe. E é isso que me deixa perplexo: a coisa parece estar a pensar a partir do estado perturbado em que nos encontramos. Talvez tudo isto tenha sido um sonho. Não me atrevo, porém, a ir consultar a coisa. E se encontro lá aquilo que descrevi aqui? Se o tratado foi escrito, como poderei eu resistir à verdade que nele se manifesta?

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Telegrama

De súbito, fez-se em mim um curto-circuito. Esta prática contemporânea de textualidade mínima — como os SMS, as mensagens no WhatsApp, os posts no Twitter — tem um antepassado glorioso: o telegrama. Neste, o texto era brevíssimo, quase sempre impessoal. Comunicava qualquer coisa essencial. As pessoas usavam-no para comunicarem com rapidez à distância. Eram parcas nas palavras, pois estas eram caras. Não seria boa ideia escrever textos como os deste blogue num telegrama: custariam os olhos da cara — se é que os olhos da cara têm preço. Hoje, a economia verbal não se deverá tanto ao preço, mas à pouca disposição para escrever. Além do mais, a generalidade das mensagens, actualmente trocadas, são irrelevantes. Se fossem suprimidas, nem o emissor nem o receptor perderiam alguma coisa. Uma das ideias que me ocorreu para melhorar este blogue seria transformar os textos em telegramas pagos à palavra. Escreveria coisas como: ESTOU CANSADO STOP ESTEVE DIA MAU STOP NÃO TENHO NADA PARA DIZER STOP. Seria um blogue glorioso. STOP

domingo, 4 de maio de 2025

Verdadeira concorrência

Uma das ideias estruturantes do nosso modo de vida é a da superioridade económica do mercado. Este implica a concorrência dos produtores para satisfazerem as necessidades — reais ou imaginárias, as mais poderosas — dos consumidores. Essa concorrência implica diversificação: produtos concorrem pelas suas características específicas. Imagino que seja assim com os sites meteorológicos. Também eles disputam a atenção dos consumidores de informações climáticas. Antes de me vestir, consultei um desses oráculos. Não fui eu; pedi que o fizessem por mim. Em Lisboa, não chove. “Podes vestir isto e aquilo”, etc. Como consumidor sem espírito crítico, assim fiz. Esqueci-me da diversificação que o mercado, inclusive o meteorológico, impõe. Assim, à medida que me ia aproximando da capital, a minha fé na profecia foi-se desvanecendo. Chovia, quando cheguei ao destino. Fui consultar diversos oráculos. Havia previsões para todos os gostos: sol, chuva a rodos, chuva intermitente, tempo nublado mas sem queda de água. Só faltava a anunciação de queda de neve. Pensei: isto é o mercado a funcionar. E, se me vesti em contraciclo com o estado do tempo, a culpa é minha. O mercado dava-me várias possibilidades, embora apenas uma de acordo com a realidade. Se escolhi a previsão errada, o problema não é do mercado, mas meu — do consumidor que escolheu o augúrio errado. Com isto, acabo de dar um novo contributo para a compreensão do mundo da economia. Pensava-se, até a este momento seminal, que o cliente tem sempre razão. Falso. A razão do cliente e a própria realidade são coisas sem valor. O que interessa é a variedade da oferta, mesmo que seja falsa. Seria um grande aborrecimento se todos os sites meteorológicos anunciassem o mesmo estado do tempo, mesmo que esse estivesse de acordo com a realidade. Não apenas seria monótono, como haveria, na verdade, uma prática espúria de cartelização.

sábado, 3 de maio de 2025

No reino da momice

Não sei se tem autor específico ou se é um ditado produzido pela experiência do mais trivial senso comum, mas tem uma força tal que a própria realidade o confirma: quando um palhaço se muda para um palácio, ele não se torna rei; o palácio é que se torna um circo. Os tempos estão interessantes — o que é, na verdade, uma praga das piores que podem ser rogadas. Onde se estava habituado à gravitas ligada às coisas que jogam com a vida das pessoas, encontramos agora um espectáculo funesto. O ditado é cruel para os palhaços, pois muitos destes saberiam comportar-se bem melhor do que certos ocupantes de palácios legitimados pelos eleitores. Medito, depois de ler mais um episódio triste, se tudo não se deverá a essa queda do homem público de que fala o livro de Sennett citado ontem. Quando alguém ocupa o poder e não elimina, na persona pública, as suas idiossincrasias, isso significa o triunfo completo do homem privado sobre o homem público. Há momices que são permitidas em casa, mas não perante os outros. Quando todos os devaneios se trazem para o espaço público, estamos perante uma tirania: a tirania da intimidade, da expressão pura de si. Contudo, se todos passarmos a agir deste modo, mimetizando os homens mais poderosos do planeta, que agora se entretêm a dizer o que lhes vem à cabeça ou a partilhar a primeira pequena dor que lhes fere o narcisismo, a vida humana tornar-se-á impossível. O pior de tudo, porém, é que esses ocupantes de palácios são o reflexo de quem os escolheu. Está um sábado sórdido. Para piorar as coisas, tenho uma consulta para daqui a pouco, uma rotina que já vai no segundo adiamento. Os dias estão cinzentos. Também eu.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Sem vocação

Quase me esqueço, mas hoje é sexta-feira. Estranhei o barulho na praceta em baixo: uma série de rapazolas adolescem à volta de uma bola, com as bocas incapazes de suster aquilo que lhes sai da garganta. Depois de algum esforço, consegui sintonizar o dia: estão apenas a fazer horas para entrarem para o instituto de línguas, onde aprenderão, por certo, inglês. Os pais ainda acalentam a crença de que o inglês é a língua-franca do mundo. Talvez seja já uma convicção anacrónica, apesar de parecer que é uma língua do futuro. As aparências têm, contudo, um estranho destino: o de caírem e rebolarem no chão, até que um coveiro desocupado as recolha e enterre bem fundo no túmulo da história. Haverá quem pense que este narrador, ao escrever “túmulo da história”, está a metaforizar. Não está. Fala literalmente. A história não é mais do que o túmulo onde se enterram todas as ilusões que deram sentido à vida, bem como as decepções que a aproximaram do pesadelo. A história é uma Arca de Noé ao contrário: nesta, recolhia-se a vida; naquela, a morte. Acabei de acordar, depois de ter adormecido em frente a este texto. Acordei com um gesto da mão, mas apenas um gesto que fazia parte do sonho em que tinha mergulhado, e não de um acto físico. A literalidade da minha fala — no caso, escrita — é soporífera. Nem eu lhe resisto. Começo a escrever e afundo-me. A consciência prefere apagar-se a ler aquilo que sai dos meus dedos quando chocam com o teclado. Depois, entrega-se a fantasias oníricas, mas estas não se conseguem fixar quando transito para o estado de vigília. Os adolescentes continuam a exercitar a garganta. Também o vento decidiu tamborilar nas persianas. É a música do mundo, deste em que me encontro. Sim, hoje é sexta-feira e vamos entrar nos dias inúteis, nos quais não há institutos onde se aprendam línguas-francas. Bocejo, esfrego os olhos, reparo nas acácias a ramalhar, impelidas por uma energia invisível. Diante de mim jaz, entregue à morte, Marat, numa reprodução do quadro de Jacques-Louis David, que serve de capa ao livro de Richard Sennett, The Fall of Public Man. Dentro do livro, descubro um bilhete de cinema. Pelas 18:15, de um 25 de Março, terei ido ao Nimas, ver O Grande Silêncio. Preço: cinco euros. Contudo, o bilhete não consegue dar-me a informação que procuro: em que ano? Sei bem qual é o filme. Um documentário sobre a Grande Cartuxa nos Alpes Franceses, onde é mostrado o quotidiano dos monges. Claramente, os aprendizes de línguas-francas não têm vocação de cartuxos. Hélas!

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Em estado de superposição

Encontro-me num estado de superposição, isto é, combino múltiplos estados possíveis. Quem sou eu, anónimo detentor deste blogue? Num estado de superposição, sou o proprietário do blogue, o seu autor, o seu narrador, a sua personagem, o seu produto e a sua vítima. Estes eus superpostos estão longe de terem relações cordiais entre si. Só quando alguma coisa vinda de fora o exige – por exemplo, um sinal invisível de que chegou a hora de narrar qualquer coisa – é que uma das possibilidades se actualiza e logo me transformo em narrador. Até esse momento, eu era e não era um narrador. Isto não é novidade alguma, pois acontecia o mesmo com o célebre gato de Schrödinger. Só que, não sendo eu um gato, tenho uma superposição mais densa. O pobre do bichano estava, ao mesmo tempo, morto e vivo; os meus possíveis superpostos são mais amplos, embora eu não tenha a faculdade de miar, coisa que qualquer gato faz, embora o de Schrödinger estivesse estranhamente silencioso dentro da caixa selada onde fora posto contra a sua vontade. Foi nisto que pensei quando, há pouco, fui fazer a minha caminhada diária em busca de pontos cardio. Vi um gato atravessar a estrada e lembrei-me da história. Há nela um ponto fraco que nenhum físico notou. Se o gato se encontra num estado superposto, em que está, ao mesmo tempo, vivo e morto, como é que se explica que o gato no estado de vivo não mie? Já se viu algum gato fechado numa caixa que não mie em protesto? Se eu fosse físico, teria refutado a experiência, argumentando que o gato estava morto e apenas morto, pois em momento algum há notícia de que tivesse miado. Sei o que o próprio Schrödinger responderia: precipitação sua, meu caro senhor. O gato, no estado de morto, não mia, claro. Até aí o senhor compreende. No estado de vivo, não mia porque, dentro da caixa escura, ele sente que é noite, está a dormir, e os gatos quando dormem, apesar de sonharem, não miam. A minha experiência está salva. Eu argumentaria, de imediato: se há necessidade de recorrer a especificações adicionais, então o argumento não é grande coisa. A simplicidade é a virtude dos bons argumentos. Mais: acrescentaria, sem temor, o sono é o irmão gémeo da morte, como muito bem assinalou Schopenhauer. Portanto, o gato dentro da caixa está morto. Este é o meu contributo glorioso para a física: a refutação da experiência mental do Gato de Schrödinger e a desmontagem da ideia de que o gato estava num estado superposto enquanto não se abrisse a terrível caixa e se observasse o pobre tareco. Só os seres humanos podem estar em superposição, acrescento agora. Nós e as partículas subatómicas. Veja-se o caso de Fernando Pessoa. Aquilo não é um caso de heteronímia, mas de superposição. Antes de começar a escrever, ele era Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, Vicente Guedes e mais uns setenta, com diversos graus de potencialidade, além de Fernando Pessoa. Quanto ao gato do poeta, não há registo de que tenha tido um. Não se dava com seres incapazes de estados de superposição. Compreendo-o muito bem.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Problemas de identidade

O mês finda tempestuoso, uma revolta inútil contra o destino. Agora, o sol rompe as nuvens, mas ainda há pouco chovia e trovejava. Cronos devora os seus próprios filhos, mas é assim que a natureza está organizada: um contínuo banquete onde o tempo engole cada um dos seres que trouxe à existência. O que se pensa menos, porém, é a natureza autofágica do próprio tempo. Engole-se, abocanha-se, numa ânsia infinita de chegar a um lugar de repouso a que nunca chegará. O tempo é um deus insaciável e, nessa insaciabilidade, está a sua infelicidade. Mal produz um instante, logo o come, e não tem tempo de o mastigar. É incompreensível. Razão tinha Agostinho de Hipona, que chegou a santo, quando escreveu: Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio. O que será traduzido por: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, já não sei." Esta perplexidade não é apenas a de um homem mas, na verdade, é a do próprio tempo. Ele não sabe o que é, e essa ignorância torna-o voraz e volúvel. Traz uma coisa e logo a leva. Caso fosse eu o criador do mundo, teria tido cuidado antes de nele colocar o tempo. Pô-lo-ia numa escola, para aprender quem é. O tempo tem um problema com o seu self. Se ele soubesse a sua identidade, tudo seria diferente. Não haveria rancor nem ressentimento naquela alma. Talvez, na criação de um próximo universo, me peçam opinião. Só espero não a esquecer até lá.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Impotência

Começar com uma citação: “Não faças com que esse mês te procure.” É um verso de Herberto Helder, de um poema com o título Os mortos perigosos, fim. Estou a ficar repetitivo. Num post anterior, já o tinha citado. A repetição não é apenas um sinal de que se atingiu a idade em que certos temas tendem a voltar uma e outra vez, o estádio de vida em que se conta infinitamente a mesma história. O que se repete é o que, de algum modo, exerce sobre nós um encantamento. E devemos ler nesta palavra muitas coisas: feitiço, sedução, tentação, enlevo, êxtase. Somos trabalhados por dentro por certos símbolos, que murmuram, rumorejam e troam na oralidade ou na escrita. Como não quero matar o fascínio do verso, recuso-me, por hoje, a interpretá-lo, para deixar o espírito vogar nas suas palavras. Os tempos modernos são acusados de terem assassinado o encantamento. Talvez — penso-o agora — o diagnóstico de Max Weber tenha sido apressado. A perda das grandes estruturas míticas que forneciam uma imagem encantada do mundo, imagem partilhada pela comunidade, abriu as portas para os encantamentos singulares. Não são as narrativas mítico-religiosas que nos encantam, mas os nossos mitos particulares. Cada um de nós traz em si uma mitologia e é, ao mesmo tempo, um fundador de religião. De uma religião sem eclésia e com um único crente. Essa religião pode ter vários deuses, incluindo o Deus único do monoteísmo, ou pode ter um deus hoje, outro amanhã. O encantamento não morreu, singularizou-se, desligou-se do feitiço comunitário, da crença em multidão, para se tornar pessoal e intransmissível. Essa, porém, é a natureza de todas as nossas experiências: são singulares e incomunicáveis. O que comunicamos não é a experiência, mas o que dizemos acerca dela. O que me encanta no verso de Herberto Helder não se deixa captar pelas palavras, o que mostra uma coisa paradoxal: a linguagem é impotente para se dizer a si mesma.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Apagão

Imagino que o dia 28 de Abril esteja mal servido de efemérides. Para colmatar a falta, decidiu dar-se, e a nós com ele, um apagão memorável. Decretou que toda a Península Ibérica ficaria sem energia. Não sei se, da sua parte, foi uma decisão sábia. Duvido que algum dos países afectados declare o dia de hoje feriado nacional. Por outro lado, mostrou os limites da minha energia. Não me agradou chegar junto aos elevadores, abrir a porta que dá para as escadas e subir, degrau a degrau, até ao quinto andar. Ainda pensei, depois de ter ultrapassado o primeiro lance de escadas: isto faz-me bem. Conforme fui subindo, a minha opinião foi-se alterando. No quarto andar, lancei uma praga à ideia de cortar a energia. No quinto, resmunguei enquanto procurava a fechadura da porta. Acabado o almoço, tive de descer as escadas. A tarefa não foi desagradável. A minha cultura, onde borbulham ditados populares, informou-me: para baixo todos os santos ajudam. Ao ouvir a frase no fundo da minha consciência, estanquei e invectivei todos os santos, esses mesmos que ajudam para baixo e têm um dia só para eles. Deveriam ter vergonha. O que nós precisamos é de ajuda para subir e não para descer. Para quedas estamos cá nós. Aliás, somos especialistas em trambolhões. Disse-lhes isto em pensamento, claro. Talvez esses santos que formam uma totalidade não tenham gostado da reprimenda. Fui fazer o que tinha a fazer e, passadas umas duas horas, voltei para casa. Preparado para mais ascensão sem ajuda dos santos, conformado e sem energia, que em mim também sofrera um apagão, descubro que no elevador brilhava uma luzinha vermelha. Abro a porta, fecho-a, carrego no botão e vou eu até ao quinto andar, olhando para o espelho para ver se havia algum sinal de gratidão na minha cara. Ao chegar a casa, curvei-me, em pensamento,  perante todos os santos. Afinal, sempre fizeram o trabalho deles. Não sabia que eram electricistas. Exclamei mesmo, para os motivar: Excelente trabalho! Bem merecem o dia que o calendário lhes dedica.

domingo, 27 de abril de 2025

Uma conversa

Acabei de chegar de Itália. Ouvi do outro lado do telemóvel. Foi ao enterro do Papa, respondi. Uma gargalhada. Não, não. Devia ter ido, afinal ambos foram formados pela mesma Sociedade, respondi. Ou a sua veia de Settembrini, apesar de ser um jesuíta, o torna jacobino, acrescentei. O meu amigo padre Lodo, Lodovico Settembrini, continuou a rir. Não me provoque, ameaçou. Fui ver um sobrinho bisneto e baptizá-lo. Il Piccolo Settembrini que há-de assegurar a continuidade imortal dos Settembrinis, atirei. Sempre me pareceu que crê mais na imortalidade grega – aquela que vem pelos grandes actos e grandes palavras, mas, acima de tudo, pela continuidade biológica – do que naquela que lhe chegou de Jerusalém. Hoje, não consegue provocar-me. Além do mais, não acredito nessa veia de provocador, respondeu-me. Bem me parecia que lhe falhava a fé, contrapus. Sim, por vezes falta-me a fé, não no Alto, mas nas coisas baixas. Há muito tempo que não conversávamos, declarei, para mudar de assunto. Apesar da idade, tenho andado muito ocupado e não apenas com o baptizado do Pietro. Assuntos da Companhia. Não somos assim tantos e as solicitações não param. Liguei-lhe para combinarmos um jantar no próximo sábado. Estará cá o Hans e a Emília; acho que devemos juntar o grupo todo. Isso não será uma desculpa para esconder o pecado da gula? Não se preocupe com os meus pecados, ouvi. Trato disso, ao contrário de si, exclamou. Por mim, disse, nada a opor; antes pelo contrário. Quer que eu escolha o sítio e marque, perguntei. Não se preocupe, eu trato disso, prometo. Desde que não seja... não tive tempo de acabar a frase. Eu sei, eu sei. Estamos combinados, continuou, depois digo-lhe o local e a hora é a de sempre. Agora, tenho de ligar para a família em Itália.

sábado, 26 de abril de 2025

Dignos de registo

Não sei por que razão chegou à minha consciência a expressão A Ronda da Noite. É a designação de um programa da Antena 2, onde se fala de livros. É também um eco de um quadro de Rembrandt. O título é fascinante. Aliás, sinto um grande fascínio por títulos. Um dos filósofos com mais talento para os produzir é o italiano Giorgio Agamben. Recebi há pouco — também há empresas a fazer entregas ao sábado — uma série de livros, entre eles a edição integral, num único volume, de Homo Sacer, a qual contém em si nove obras distintas. Veja-se o título da primeira obra: Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua. O quarto livro da série é Horkos. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. O quinto também tem um título notável: Oikonomia. O Reino e a Glória – Para uma genealogia teológica da economia e do governo. Também se distinguem Opus Dei. Arqueologia do Ofício e, ainda dentro da série Homo Sacer, O uso dos corpos. Fora da série, O Tempo que resta – Comentário à Carta aos Romanos e O Reino e o Jardim não ficam atrás. Encontrar títulos é um exercício requintado, pois envolve, por um lado, uma grande capacidade de síntese e, por outro, um afinado sentido estético. Imagino que Agamben terá um grande prazer em baptizar as suas obras, talvez tanto quanto em escrevê-las. Entre os livros que recebi hoje, vinha também um de outro filósofo italiano, Paolo Virno. Também ele sabe encontrar excelentes títulos: Gramática da Multidão – Para uma análise das formas de vida contemporâneas. Agora que escrevo sobre isto, ocorre-me que o facto de ambos serem italianos pode ter uma importância decisiva. Talvez a arte de escolher bons títulos seja um fenómeno regional. Não digo todo o mundo, mas todo o Ocidente devia ser italiano. Não por motivos políticos ou sociais — isso seria uma péssima ideia —, mas por uma questão estética. Nem que fosse para aprender a encontrar títulos dignos de registo.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Uma arte

Um dos meus talentos – talvez o único – é o da arte de protelar. Protelei tanto que fui coagido pela realidade a dedicar o feriado a coisas que tinha de fazer, mas cuja execução me causa náuseas. E, esclareça-se, não sou dado a náuseas, embora a náusea sartriana tenha exercido fascínio sobre a minha configuração mental mais do que devia, reconheço. Não sofro de procrastinação. O meu adiar coisas repelentes não é uma doença, mas uma arte, a arte de protelar, como escrevi acima. Procrastinar é uma doença porque o sujeito que procrastina é passivo. Sofre a procrastinação, como se sofresse de reumático, de gripe ou de uma qualquer doença do catálogo sem fim que os médicos guardam no cofre-forte dos seus consultórios. Protelar, porém, resulta de uma decisão, a qual dá às coisas proteladas espaço para amadurecerem, para se tornarem mais sólidas e, por isso, mais imperativas. Quando chegam a essa fase, apresentam-se diante de mim – daquele que as permitiu desenvolver na irresolução – e, peremptórias, pedem para serem resolvidas. Eu cedo ao pedido. Por isso, quase não dei pelo feriado cívico, ocupado com aquilo que tinha adiado. Este episódio é virtuoso. Mostra que a ordem do mundo está errada, coisa que Hamlet já sabia ou o próprio Quixote. Errada porquê? Pelo facto de tudo aquilo que eu protelo não desaparecer no seu protelamento. Isso, sim, seria um mundo perfeito, ou quase. Também este texto foi, na sua escrita, protelado. Não foi por isso que se tornou melhor, apenas esteve mais tempo naquele limbo onde vivem os textos que estão à espera de ser escritos. Pois, se alguém pensa que os textos só existem porque alguém os escreve, posso afirmar que está errado. Qualquer texto, desde o mais incipiente até ao mais genial, existe a priori num estado potencial no mundo de textos à espera de se manifestar. Aquele que os escreve é apenas uma espécie de parteira que traz à luz do mundo a cria que existia já. Eu não escrevo estes textos. Faço o parto e eles nascem. Sou completamente irresponsável pela sua bondade ou maldade. Juro que é assim.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A mesa do lado

Hoje já fiz uma viagem de doze graus centígrados. Há quem meça a distância pelos quilómetros, há quem o faça pelos ponteiros do relógio. Eu sirvo-me do termómetro. Fui almoçar a certa praia do Oeste. Quando saí de lá, estavam dezoito graus, bem depois das duas da tarde. Ainda me demorei por aqui e por ali. Quando cheguei a esta cidade – cuja honra maior seria a promoção a vila, o que nos dias de hoje é impossível – estavam trinta. Como sempre, o peixe daquele restaurante é excelente. O problema é que não podemos escolher quem se senta na mesa ao lado. Calhou em sorte um casal – enfim, talvez não fosse um casal, mas um homem e uma mulher – em que ele mal abria a boca, seja para comer, seja para beber, seja para falar. Ela, porém, compensava a frugalidade dele e restabelecia o equilíbrio no mundo. A certa altura, o discurso dela voltou-se para a teologia. Que tinha lido qualquer coisa que não percebi, embora tivesse ficado desejoso de saber o quê. Asseverou que Jesus Cristo tinha sido casado com Maria Madalena, e deu uma explicação teológica: ele era Deus e homem, e, como homem, decidiu casar-se, mas não adiantou se tinha tido filhos e se fora feliz no casamento. Como Deus, fez todas aquelas coisas de multiplicar os pães, curar os doentes, ressuscitar os mortos e transformar a água em vinho. Tudo isso era verdade, está mais que provado cientificamente. Só não há filmes nem fotos, pensei, porque ainda não tinham descoberto o cinema, nem a máquina fotográfica. Quando ela pediu a segunda garrafa de vinho, deu a desculpa de que estava com muita sede, mas percebi que acreditava que ainda era um resto do vinho das Bodas de Canaã, e que era melhor aproveitar, não vá esgotar-se. O que me pareceu bastante plausível. Tinha uma cor rosada e não o vermelho tinto que teria resultado da metamorfose da água. Dois milénios sempre são dois milénios, e as antocianinas perderam o vigor, ficaram anémicas. A senhora, porém, não se preocupou com a anemia e, para compensar, pediu uma aguardente velha, com aquela cor castanha que faz lembrar sangue seco. Não devia escrever estas coisas. Sabe-se lá se são verdade. O pior foi a chegada, depois de doze graus de viagem.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Ramalhetes de papoilas

Hoje – finalmente – fui caminhar pelas ruas da cidade. Passei pelo parque, mas não era um parque de merendas. Não havia piqueniques de burguesas, nem ramalhetes rubros de papoilas, nem seios como duas rolas. As burguesas de hoje não andam de burro, deslocam-se a grande velocidade, não sabem o que são piqueniques nem papoilas – e, quanto aos seios como duas rolas, estamos conversados. Cesário Verde não escreveu papoilas, mas papoulas. Em contrapartida, no tempo dele, seria provável que o ouro fosse oiro. As pessoas iam aos toiros; hoje vão aos touros. Ninguém encontra tesoiros, mas também não descobre tesouros. Tesouro ou tesoiro, a coisa não se entrega a ninguém – ou quase. Foi isto que ocupou o vazio da minha mente enquanto caminhava? Não, claro que não. Isto ocorreu-me agora, pois aquilo que pensei evaporou-se. Esta ideia de um pensamento que se evapora contém uma importante lição sobre a mecânica do mundo – do mundo mental. Talvez o único mundo que exista seja o mundo mental, mas não vou discutir metafísica ou epistemologia a uma hora destas. A lição pertence à física – talvez à mecânica dos fluidos. A evaporação do pensamento é um fenómeno interessante porque o processo não é igual ao longo da vida. A princípio, o pensamento não se evapora porque não se pensa nada. Depois, o pensamento torna-se sólido e fica dentro de nós: são os primeiros princípios. Mais tarde, o pensamento sofre uma metamorfose e devém líquido – aquilo a que se poderia chamar a água do pensamento. Eu vivo, porém, noutra fase: a do pensamento gasoso. Mal penso, ele transforma-se em gás e evola-se, evapora-se – o que quiserem. Quando Joyce escreveu o Ulisses e o Finnegans Wake, o seu pensamento era líquido. Por isso, recorria à corrente do pensamento – ou da consciência. Era a água do pensamento a fluir dentro da cabeça dele. Eu passei directamente da fase sólida para a gasosa. Faltou-me a líquida. Se a tivesse, talvez ao caminhar descobrisse um piquenique de burguesas, que, sem posturas tolas, colhiam ramalhetes rubros de papoulas. A vida é perda contínua.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Hesito, hesito

Voltou a luz sobre as ruas. A Primavera começa a inclinar-se para o futuro estival, ela que esteve tanto tempo fascinada pelo passado invernoso. Talvez por isso – penso-o agora – ela seja uma estação volúvel, de paixões irracionais e desejos inconfessáveis. É muito capaz de entrar em Maio com a forja de Vulcano debaixo do braço. Tê-la-á roubado ao deus, ele que é coxo e não pode perseguir ladrões. Sim, a Primavera é uma ladra contumaz, de personalidade inconstante; rouba a um lado e a outro as vestes com que se apresenta diante dos mortais, para lhes dar um horizonte onde eles – pobres criaturas decaídas – se entregam, como animais perdidos entre o deserto e a floresta, ao labor de cada dia. Estou sem assunto para escrever, coisa que me acontece muito à segunda-feira. Eu sei que estamos numa terça, mas penso – melhor, sinto – que estou no dia que vem depois de domingo. Este sentimento rouba-me o assunto, embora não me diminua a verborreia. Talvez tenha nascido voltado para a loquacidade, dado à facúndia, perdido no labirinto do verbo. Estive todo o dia a montar um engenhoso esquema para me facilitar certa tarefa que devo realizar. Agora que o concluí, constato que, se tivesse empregado o tempo na tarefa, já a tinha acabado. Novo problema: ou a inteligência é parca, ou não me serve para nada. O mais ajuizado será ir caminhar, aproveitar o sol – dizem que faz bem à vitamina D. Eu fico maravilhado, mas não me sinto motivado por isso. Não sou vitamina D. Se o fosse, nem hesitava; assim hesito, hesito, hesito se acabo este texto e vou para a rua, ou se o acabo e fico a descansar. Está uma tarde cheia de luz.