domingo, 20 de setembro de 2020

O desconsolo de domingo

Hoje é o primeiro domingo, de há muito para cá, que traz consigo o desconsolo da semana que se avizinha. Nunca soube se essa triste melancolia era parte inteira deste dia de ócio e que se projectava para os dias úteis ou, pelo contrário, ele a recebia vinda do futuro. É possível que muitas das coisas que sentimos no presente sejam apenas reflexos daquilo que existe na casa do futuro e que este envia para o presente como um sinal do que espera os mortais. Sentado numa esplanada na ilha do Baleal fiquei a olhar o mar pejado de surfistas que se entregavam ao difícil equilíbrio sobre a prancha. Estava nesta contemplação distraída quando oiço a voz do padre Lodovico. Se fosse novo, disse, aprenderia a fazer surf, agora é tarde. Quando se sentou à nossa mesa, acrescentou, os Settembrini nunca foram particularmente dados ao desporto. Os seus interesses sempre foram outros, talvez piores. Ainda por aqui, perguntei-lhe. Com a minha idade, respondeu, tenho uma maior liberdade e vim passar o fim-de-semana à casa da Companhia. Seja como for, já disse Missa, embora não tivesse assistência. Eu ri-me. Tem uma vantagem, continuou, não proferi a homilia. Já não tenho paciência para pregar a mim mesmo. Compreendo, respondi. Vamos almoçar à Areia Branca? Conheço lá um bar sobre a praia onde podemos comer e conversar descansadamente. Anuí. Então encontramo-nos lá às duas e meia. Pensei que era um horário pouco católico para um velho jesuíta, mas não disse nada. Ele levantou-se e eu fiquei sem assunto. Temos de nos despachar para o não fazer esperar.

sábado, 19 de setembro de 2020

Equívocos

No seu muito famoso livro Psychologie des Foules, de 1895, Gustave Le Bon cita um estranho caso narrado pelo diário L’Éclair em Abril desse mesmo ano. Tendo aparecido em Paris o cadáver de um rapaz em idade escolar, um outro identificou-o como sendo um seu colega de escola desaparecido há meses. Esta identificação foi corroborada pelos companheiros, pelo professor, pelos vizinhos, pelo tio da criança e pela própria mãe. O problema é que, passadas seis semanas, a polícia estabeleceu a identidade da criança, sem sombra para dúvida, e ela nada tinha a ver com aquela que as sucessivas identificações lhe atribuíram. Tratava-se de um rapaz de Bordéus, aí assassinado e despachado para Paris. A vida é assim feita de equívocos, que se multiplicam sem cessar. Também eu hoje julguei entrever sob uma máscara o rosto de alguém conhecido. Ainda me aproximei, mas valeu-me uma súbita mudança de posição da pessoa, para que vista de outra perspectiva se revelasse não ser quem eu supunha. Fiquei grato ao destino por evitar fazer uma triste figura, mas depois pensei que vivemos uma época interessante. Um terrível equívoco pode ser sempre o início de uma bela amizade. Aviso já que estas últimas palavras são uma citação sem aspas do diálogo final de um certo filme cujo nome omito. São plágio, pois, por falência de imaginação, não encontrei melhor saída do que esta. Agora vou cortar o cabelo. Será que me reconhecerei de seguida?

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Grandes causas

Ontem descobri que a mãe da visceral Natália Correia publicou dois romances, na década de quarenta do século passado, sob o singelo pseudónimo de Ana Maria. Quando percebi a ligação não pude evitar a comparação da visceralidade de uma com a singeleza pseudonímica de outra. Acabo de ser informado que alguém chegou primeiro do que eu a uns livros que há muito pensara em comprar. Terei de fazer novas investigações. O dia está buliçoso. O vento, irritadiço, sopra ao deus-dará, rajada para aqui, lufada para acolá, descarrega a sua ira sobre as copas das árvores que, medrosas, tremem, abanam, entregam-se, em coreografia frívola, a uma dança lamentável. Por vezes, chove. O Outono triunfou sobre o despotismo estival. Tenho ocupado os dias com a preparação de um longo relatório. Estou a tornar-me um especialista em tabelas e gráficos. Nasci com uma propensão para as coisas inúteis e elas não se fazem rogadas, vêm ter comigo para que lhes dê atenção. Muito admiro aquelas pessoas que têm sempre grandes causas e muito se agitam para tornar o mundo melhor, embora o mundo se recuse perpetuamente em fazer-lhe a vontade, quando não, devido à sua agitação, se torna um sítio bem mais infrequentável. Também eu gostaria de ter grandes causas, mas se me dessem uma, por maior que ela fosse, logo eu haveria de a apequenar e torná-la, pela minha mera adesão, em coisa risível. Grandes causas, mesmo ali ao entrar da Modernidade, tinha D. Quixote. A partir daí, e cada vez mais e mais rapidamente, toda a gente passou a ver gigantes onde estavam moinhos. O mais sensato seria evitar estas considerações, pois toda a gente precisa do consolo de uma grande causa. Até eu tenho a grande causa de não ter grandes causas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A palavra que não tenho

Perco-me na procura de uma palavra. A que tenho não me serve. Nisso não me distingo dos outros e quase sinto com eles uma fraternidade nesse nunca servir aquilo que se tem. A uns é o carro que não serve, a outros é a mulher ou o marido, a alguns será o destino, a número incerto de pessoas não lhe servirá a hora de nascimento, talvez pela disposição desfavorável dos astros, a mim são apenas as palavras que me não servem. Há quem tenha palavras dignas de inveja e eu, confesso-o sem contrição, não me faço rogado na cobiça. Talvez existam pessoas capazes de roubar ou matar por uma palavra. Apesar de dado à hipérbole, não vou tão longe. Não por mérito meu, mas porque a natureza não me deu inclinação para o crime. Enquanto escrevo oiço Anouar Brahem, um tunisino tocador de oud, um belíssimo instrumento de cordas parecido com o alaúde. A música combina-se com o tamborilar das persianas e o silvar do vento numa fresta da janela, e eu esqueço-me da palavra que não tenho. O pequeno bosque da escola ao lado resistiu bem à estiagem. Também as acácias da rua estão vigorosas. O Verão curva-se para o Outono e isso é tudo aquilo que agora desejo, mais do que a palavra que não tenho. Recobro o ânimo com o minguar dos dias. Talvez tenha nascido com a lua em quarto-minguante.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Perder o rosto

Quando saí de casa havia um charivari de cuja natureza me tinha esquecido. Junto à escola primária amontoavam-se pais e crianças. Destas saíam sons agudos, verdadeiros estiletes a enterrarem-se pelos tímpanos. Se os pais tinham rosto, foi coisa que não descobri. Estavam de máscara e nunca sabemos o que se esconde por detrás de uma coisa dessas. Quando a uso começo por sentir uma ligeira irritação devido à circulação do ar, mais tarde sou acometido pelo temor de ter perdido o rosto. Alguém me diz que mais vale perder o rosto do que a face. É um caso a considerar, embora os nossos tempos não tenham qualquer interesse por questões de honra. Ainda no século XIX o duelo era recorrente. O último que aconteceu em Portugal foi em 1925 e aquele que o perdeu acabou por morrer de síncope cardíaca, o que não deixa de ser trágico. Ao menos que tivesse sucumbido a uma estocada do adversário. O instituto do duelo servia para as pessoas lavarem a honra, as que a tinham, pois nem toda a gente tinha dinheiro para comprar e usar uma peça de vestuário tão cara. Como não havia máquinas de lavar e a honra não fosse coisa que se desse para a mão de qualquer lavadeira, era preciso lavá-la em sangue. Era um tempo de grandes susceptibilidades. Não se pense, todavia, que era assunto apenas de aristocratas e monárquicos. Os republicanos também tinham uma inclinação especial para as cerimónias no campo de honra. Isto interessa a quem? A ninguém, claro, mas serve para mostrar que escrever é como as cerejas. Começa-se num assunto e acaba-se num outro completamente diferente. Há quem chame a isso volubilidade do narrador, mas pode ficar descansado que não o vou desafiar para um duelo.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O risco

Chegámos a meio de Setembro. Os dias deveriam agora inclinar-se para a melancolia. Um vento fresco, um ou outra folha caída, um sol menos dado à facúndia, a essa eloquência feita de brilho e raios a transbordar calor por todos os poros. Pára, oiço, os raios não têm poros. É pena, podiam ter. Ontem voltei-me para o cardiologista e perguntei-lhe qual o grau de risco caso seja contaminado pelo COVID. Intermédio, respondeu de imediato. E para me tranquilizar acrescentou que pelo coração não haverá problema, está como novo. O risco vem do grupo etário a que pertence. Não corro riscos pelo coração. Ainda bem, pensei. Já começo a não ter idade para os ademanes e volteios do órgão bombeador de sangue. Agora mesmo, ao abrir um livro vi uma afirmação feita há mais de 70 anos em género de previsão. Apesar do tom ser assertivo – uma das palavras odiosas em voga, tal como resiliência e a expressão inteligência emocional – a realidade decidiu contrariá-lo e fazer exactamente o contrário do que fora previsto. Não sei se isto foi um aviso, mas o melhor, ao contrário do que se tornou moda, é não confiar no coração, mesmo que esteja como novo ou por causa disso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Crenças delirantes

A dado passo da Teoria da Loucura de Massas, o escritor austríaco Hermann Broch faz a pergunta: Quem era louco, as bruxas ou aqueles que as queimavam? Talvez, responde, ambos, pelo menos o mais das vezes. Umas e outros viviam mergulhados em crenças delirantes. Apesar de hoje em dia já não ser de bom tom andar por aí a queimar bruxas, um progresso civilizacional digno de nota, as crenças delirantes não acabaram. Parecem ter-se expandido e mal se olha para o mundo ou se dá alguma atenção à imprensa e às redes sociais, fica-se com a impressão de que se vive mergulhado num mundo de delírios. Nesses momentos, desconfio que os meus pensamentos e as minhas crenças são todos eles também delirantes e como tal perigosos. O melhor é abster-me de ter pensamentos e crenças. Espreito pela janela e vejo as torres do castelo, depois passo com os olhos pelo friso das orquídeas, por fim respiro fundo. As torres não têm crenças e as orquídeas não pensam, o que quer dizer que nem tudo estará perdido.

domingo, 13 de setembro de 2020

Um outro calendário

Um almoço tardio de domingo. Depois, como em outros tempos, a refeição prolongou-se entre conversas de ocasião. Não tarda e todos terão de voltar para os sítios por onde conduzem as suas existências. Em tudo isto há uma espécie de recapitulação, mas com personagens diferentes e os que se mantêm ocupam outros lugares na pirâmide etária. Lembro-me muito bem desses domingos em que eu actuava no palco dos mais novos. Cabe-me, agora, o lugar oposto. Só se percebe o que isso significa quando se chega aí, quando os carros começam a sair e de lá de dentro há mãos a acenar, se trocam despedidas e em vez de escutar diz-se boa-viagem e se ouve obrigado, obrigada, adeus avô. Estes são os calendários mais autênticos e os mais terríveis. Neles não se rasgam as folhas dos meses até que estes voltem, numa dança que parece sem fim, como se nada tivesse acontecido. Neste outro apenas se muda de lugar até que o nosso seja suprimido e a outros caiba dizer boa-viagem. Será para isto que um dia se terá inventado a palavra tradição, para que alguém diga boa-viagem e outros acenem de dentro de um carro. Não é a nostalgia que invade a consciência em domingos destes, mas a certeza de que o tempo é um cavalo sem freio e que não há nada mais evidente sobre este mundo do que a nossa finitude, do que a nossa transitoriedade. E estas fazem parte da velha justiça que regula o cosmos que nos foi dado para viver.

sábado, 12 de setembro de 2020

Sábado à tarde

A tarde de sábado vai a meio. Oiço o rumorejar dos carros, oiço vozes entretidas com pequenos dramas domésticos, oiço pássaros presos a disputas eternas. De todos os romances publicados por Carlos de Oliveira, há um que nunca tinha lido, Alcateia. Publicado nos anos quarenta do século passado, nunca mais foi reeditado. Consegui um exemplar num alfarrabista. O talento do autor é excessivo para os universos sociais e psicológicos que escolhe para situar as suas narrativas. Uma insónia esta noite permitiu-me ler um quinto da obra. Lá fora as pessoas enfrentam a canícula, avançam destemidas pela avenida, escondem-se nas sombras. Um jacarandá ainda tem algumas flores, pequenas manchas roxas num oceano de folhas verdes. Há dias que oiço a música de uma freira medieval, Hildegard von Bingen. Gosto de pronunciar o seu nome devagar, como se ele contivesse um mistério e uma promessa de salvação. Teria sido uma mulher extremamente dotada. Além da música ela tinha também um talento enorme para a medicina. Fecho os olhos e dentro de mim funde-se o canto medieval com o uivo da alcateia. O meu neto que hoje conseguiu levar-me à praia já acordou da sesta. Tenho de o ajudar a andar de triciclo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O que se merece

Acabei de receber uma mensagem de que a minha encomenda já está disponível na loja. A encomenda é as traduções das Geórgicas e das Bucólicas, de Vergílio, editadas, o ano passado, pela Cotovia, a moribunda editora. Não tinha dado por elas e foi um acaso que me as fez descobrir. Desconheço o motivo, por certo um conflito teórico ou de tradição universitária, que leva o tradutor destas duas obras a grafar o nome do autor como Vergílio, enquanto o tradutor da Eneida o denomina Virgílio. O mundo tem muitos mistérios. Hoje levantei-me cedo, pois tinha uma tele-reunião às 8:30. Lá videoconferenciei o melhor que fui capaz. É nestas alturas que penso coisas terríveis. Quando cheguei às funções que me ajudam a pagar as contas e a suprir a maldita necessidade, ninguém com a minha idade actual se arrastava por aqueles lugares inóspitos. Já tinha saído pelo menos há quatro anos e dedicava-se a passear ou a fazer o que lhe dava na real gana. O melhor é não me deixar tomar por sentimentos negativos, pensei, pois se para mim é desagradável este degradar-me perante os olhos atentos de terceiros, bem pior é para aqueles que têm de suportar as minhas idiossincrasias, o desacerto que tenho da realidade, as minhas ideias abomináveis sobre o que deveria ser a ordem do mundo. Vou comer qualquer coisa e tomar café, pois não tarda terei de revideoconferenciar. Um dos homúnculos que vive na caverna do meu inconsciente tomou o elevador e parou mesmo à entrada da porta da consciência e atirou-me de chofre: cada um tem o que merece, ninguém te mandou ser idiota e não me teres dado ouvidos. Não dei. De facto, o mundo tem muitos mistérios.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Meus pobres enganos

Levantei-me cedo para ir fazer análises. Isto não demora, pensei. É só atravessar a avenida. Assim fiz. Chegado ao local de colheita dos materiais a analisar, descubro que está fechado. Foi transformado em posto dedicado ao COVID-19. Tenho de ir ao centro da cidade. Omito aquilo que me saiu da boca. O que seria uma história de meia dúzia de minutos transformou-se num processo que demorou mais de uma hora. Os planos da manhã foram todos estilhaçados. Isto fez-me lembrar uma canção de Chico Buarque. Uma certa Rita Levou os meus planos / Meus pobres enganos. Aqui não foi nenhuma Rita, mas a verdade é que todos os meus planos não passam de pobres enganos que uma qualquer conspiração logo trata de desfazer. Para ser honesto, tenho de dizer que vivo num mundo cheio de planos, planeamentos, planificações. Nesse estranho país pensa-se que tudo se subordina a objectivos, os quais ao longo do tempo vão mudando de designação, e que estes devem ser perseguidos através do achatamento da realidade. Nesse país, a maior parte do esforço das pessoas é andar com martelo ou maça a bater na realidade para a tornar plana. É uma pátria muito ruidosa. Pego nos livros que as minhas netas me ofereceram. Omito a referência bibliográfica, pois estou impedido pelo autor destes textos de me meter em política, e eu sou um narrador obediente. Só conto aquilo que ele deixa. Seja como for, sempre posso dizer que um trata de pestes e pragas, e o outro faz o retrato de três personagens importantes neste jardim à beira-mar plantado, todas elas endeusados pelos seus e vistas como pestes e pragas pelos outros. Esperam-me uns planos e outros enganos. Já estou de martelo na mão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Um profeta falhado

Esta é a fase do ano em que começo o dia com a consulta das previsões meteorológicas. Cada um ilude-se como quer. Olho para as do dia, as da semana e as dos próximos catorze dias. Estas são um bálsamo, ao prometerem-me temperaturas sensatas, embora com grau de probabilidade quase nulo. Sempre achei as previsões económicas uma coisa ainda mais extraordinária do que as do tempo. Mais tarde descobri que nem depois dos factos ocorridos se consegue acertar no que se prevê a posteriori. Se eu fosse meteorologista ou economista, faria as previsões na linguagem obscura de um Nostradamo. Escreveria quadras decassilábicas, onde em código faria o prognóstico do raio que cairia ali, da nuvem que passaria acolá, ou, caso se tratasse de Economia, não haveria de falhar uma compra no índice do consumo ou um investimento em esferográficas e papel higiénico de uma empresa, pequena que fosse. Tudo estaria cifrado nos meus escritos e quem quisesse conhecer a realidade, bastaria passar a vida a decifrá-los. Não quis, porém, a natureza dotar-me do talento de profeta. Uma pena, pois não há coisa mais emocionante do que uma terrível profecia, cheia de provações, anjos e trombetas. Que eu saiba, não existe nenhuma que seja anunciada pela música de piano, mas nunca se sabe. A previsão indica-me que estão trinta graus. Respiro fundo, bebo água e volto para as coisas sérias que pautam a minha risível existência.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Fé e falta de fé

Uma longa cadeia de comando. Da mãe para a avó, desta para mim. Tive de ir abrir a janela e obrigar as minhas netas a saltarem da cama. Imagino que sejam exercícios de preparação para o ano lectivo, um corte ritual com o tempo de ócio. Houve tempos mais felizes. Na Grécia antiga o ócio e a aprendizagem andavam de mãos dadas. Hoje em dia são inimigos ferozes, combatem-se sem tréguas. Quando eu tinha a idade delas, Setembro era ainda um mês sem preocupações. A escola não passava de uma nuvem difusa, que chegaria quando o tempo estivesse mais temperado. Havia nisso um saber arcaico que tinha em consideração a inutilidade de tentar ensinar seja o que for nos meses de Verão. Agora faz-se da escola um local para aprender a viver quando a península for um imenso e irrevogável deserto. O ruído de máquinas em manobra ameaça o meu equilíbrio mental. Olho para a lista de coisas que tenho para fazer e bocejo. Não é sono, apenas falta de fé. Os crentes, aqueles que o são verdadeiramente, devem ter menos sono do que as outras pessoas, pois a crença mantém-nos em vigília. Os que são tímidos e mornos no crer – ou que descrêem por completo – sentem mais propensão para dormir. E não há, na lista dos meus afazeres, uma única coisa em que tenha fé, embora também eu tenha algumas crenças. Por exemplo, tenho uma fé profunda no Império Austro-Húngaro. Pena a História não ter tido fé nele, mas a quantidade de grandes escritores que produziu só pode ser motivo de adoração. Tudo isto vem a propósito de Leo Perutz, de quem estou a ler O Cavaleiro Sueco. O autor, um judeu sefardita nascido no Império, foi, além de escritor, matemático, trabalhando sobre o cálculo de probabilidades. Trabalhou na mesma companhia de seguros e ao mesmo tempo que Franz Kafka, de quem terá sido amigo. As minhas netas já estão bem acordadas, pelo que oiço, e entre as suas actividades e as minhas crenças parece não existir qualquer ligação. Felizmente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Chegou a realidade

A realidade chegou pela manhã desta segunda-feira. Como todos sabemos ela é uma senhora muito elusiva, embora haja também quem a ache uma marafona, uma daquelas raparigas viciosas dadas ao desfrute, sempre pronta para pôr alguém em apuros. Quando começo a falar por enigmas é porque a coisa não está bem. As sombras já não são suficientes para suster o ataque desferido pelo Sol. Homens e mulheres arrastam-se pelos passeios, param sob a copa das árvores. Os carros passam devagar, revérberos ambulantes, movidos pelo desejo de alguém chegar ao destino. Os loendros da escola ao lado continuam pujantes e eu deixo-me levar pelo desvario da corrente de consciência, saltitando de assunto em assunto. Vejo o correio electrónico e sinto uma inesperada saudade do tempo em que chegavam cartas em papel, onde um envelope selado ocultava segredos e mistérios. Hoje em dia, pensei, já ninguém tem nada a velar e logo não é necessário esse ritual de desenhar as palavras em folhas de papel, aquelas palavras decisivas que mudam uma vida e que são escritas vezes sem conta, enquanto as folhas são rasgadas, e se pega noutra para recomeçar com mais precisão aquilo que se quer escrever. Muitos romances tomaram uma forma epistolográfica, mas é inverosímil que haja arte na redacção de emails e nada de decisivo pode por eles ser anunciado. A realidade chama por mim. Tenho de lhe dar alguma atenção, pois ela é um moscardo zumbidor que não se cala. Sensato seria comprar um insecticida.

domingo, 6 de setembro de 2020

O exsudar oleoso do tempo

Estou cansado, embora ainda não tenha feito nada. Basta o acinte do calor para me exaurir. Já vamos no sexto dia de Setembro, e este ainda não se mostrou uma única vez piedoso. É um mês violento, irascível, raivoso. Até os pássaros meus vizinhos andam calados. Talvez se tenham mudado para um lugar mais fresco. Fecho os olhos e deixo a música deslizar sobre mim. Oiço um CD, comprado há muito, de Reiko Kimura, Music for Koto. Há na música tradicional japonesa um grande poder para nos subtrair à marcha vexatória do tempo e dos acontecimentos e conduzir-nos a territórios nos quais as palavras não conseguem penetrar. Há que ouvir e esquecer-se de si. Ontem esteve cá o meu neto. Vimos a Masha e o Urso e brincámos com CD. Ele tirava-os do lugar e eu arrumava-os. Tenho já um longo treino nesse papel. Vai na terceira edição e ainda não percebi o fascínio que as crianças têm em desarrumar os CD. Sinto os neurónios a curvarem-se sobre si, como se se enroscassem na posição fetal para dormir. Eu bem lhes exijo sinapses, mas eles olham-me com desprezo. Bocejam e voltam-me as costas. Pudesse eu encontrar-me com Eliot e dir-lhe-ia o quanto estava enganado. Não, não é Abril o mais cruel dos meses. Setembro sim, pois nele nem há lugar para a crueldade de confundir memória e desejo, apenas o exsudar oleoso do tempo, apenas o punhal afilado da realidade cravado na garganta, apenas o uivo esfomeado do lobo perdido na floresta.

sábado, 5 de setembro de 2020

Como ser perfeito

Há um poema, How To Be Perfect, de Ron Padgett, um poeta americano, que se prolonga por nove páginas. Cada verso é um imperativo, embora não haja recurso ao ponto de exclamação. O primeiro diz apenas Dorme. Um imperativo categórico, ordena-nos absolutamente que durmamos. O último é um imperativo hipotético, pois aquilo que ele determina depende de uma condição. Transcrevo: Quando há tiros na rua, não vás para ao pé da janela. Quem quiser ser perfeito tem no poema um roteiro. Há vários imperativos interessantes. Por exemplo: Sê gentil com os objectos. Ou: Pergunta ‘Onde é a casa de banho?’ e não ‘Onde posso urinar?’. De todos os mandamentos – e são dezenas – necessários para chegarmos à perfeição aquele de que mais gosto é do segundo: Não dês conselhos. Há outra coisa que me agrada no poeta. Nasceu em Tulsa, no Oklahoma. Eu não faço ideia o que, enquanto lugar para nascer, seja Tulsa, nem nunca pus os pés no Oklahoma, mas a sonoridade de ambas as palavras fazem-me imaginar de imediato uma terrível intriga, que se desenvolve em torno do imperativo com que se encerra a primeira página do poema: Cuida primeiro das coisas que te são próximas. Arruma o quarto antes de salvares o mundo. Depois salva o mundo. Também eu posso oferecer um imperativo. Caso haja tiros na rua, não te ponhas a salvar o mundo, mesmo que já tenhas arrumado o quarto. A perfeição é um caminho difícil, pensei após ler o poema. O mais sensato é deixar-se afogar em imperfeições. Se for sábado e estiver um calor dos diabos, não te ponhas a escrever idiotices. Este foi o melhor imperativo que produzi para mim mesmo, mas nem a ele consigo dar cumprimento.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O desaparecimento dos rituais

Os olhos secam, tal o calor que está por aqui. Bebo água para me hidratar, mas ninguém consegue usar os neurónios seja no que for com estas temperaturas. Já pensei em recorrer ao ar condicionado, mas aí tudo se complica. A garganta protesta, a voz enrouquece e o espírito começa a duvidar sobre se o corpo não se terá contaminado com o novo vírus que anima a realidade pelo mundo fora. Fui levantar umas encomendas a um posto dos CTT incrustado numa loja que vende livros e materiais escolares. Toda a gente de máscara, o que terá vantagens estéticas e sociais assinaláveis. A continuar assim, chegaremos ao dia em que teremos pudor em mostrar o rosto, mesmo os praticantes de nudismo hão-de fazê-lo de máscara. Uma das minhas leituras actuais é a de um filósofo de língua alemã, de origem sul-coreana, com o inusitado nome de Byung-Chul Han. A obra é Do Desaparecimento dos Rituais. Uma leitura suave e que não há-de agradar nem a gregos nem a troianos, os bandos rivais que enxameiam a praça da filosofia. Nem aqueles que vêem nela um cálculo lógico e transparente como o cristal, nem os que a julgam um exercício esotérico de linguagem indecifrável, que quer sempre dizer outra coisa. Isto, todavia, não interessa a ninguém e a verdade é que os rituais, com o seu jogo de repetições, estão mesmo a retirar-se do mundo. As encomendas que fui levantar eram sapatos que comprei online. O ritual de ir a uma sapataria, com o calça e descalça, o experimenta este e o outro, o abre e fecha caixas, foi substituído pelo relação digital e anónima de espreitar num monitor e de tratar tudo sentado numa secretária. A minha comodidade é um punhal cravado na garganta de um mundo decente. Como se sabe, tenho uma certa propensão para a hipérbole, a que convirá dar o devido desconto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Aparência e realidade

Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil, um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen. Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises que esqueci no consultório.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Efeito Föhn

Hoje é o primeiro dia de oito em que as temperaturas estarão entre os 35 e os 38 graus. Há dias vi uma explicação sobre a razão de aqui estar um tempo quente e seco e do outro lado da serra ser mais fresco e húmido. A causa seria o efeito Föhn resultante da existência de uma cortina montanhosa – serras da Sintra, Lousã, Montejunto, Candeeiros e Aire – que se interpõe nos caminhos dos ventos vindos do mar, gerando o tempo típico do Oeste, de um dos lados, e a aproximação ao deserto deste lado. Como é assunto que me escapa e não tendo vocação para ser especialista em tudo, ou mesmo numa única coisa, acho a teoria esteticamente aprazível e tomo-a por verdadeira, mesmo que o não seja. Depois, sempre me permitiria escrever palavras como barlavento e sotavento, embora o não tenha feito para as poupar para um próximo texto. Setembro começa ao ataque. É um mês cruel, com instintos homicidas. Há nele um rancor que seria dispensável. Olha para nós e ri-se, enquanto arquitecta estratégias para nos submeter às suas humilhações. Reparo que tenho uma gaveta da secretária aberta e lembro-me que deveria procurar a minha caderneta militar. É verdade, apesar de não passar de um narrador sem narrativa, também possuo o documento que comprova que servi a pátria. Foi um mau serviço, a avaliar pela fotografia que lá se encontra. Um tipo ridículo, posso assegurar, sem o garbo de cavaleiro andante ou o aspecto feroz e implacável de um soldado de elite. Se eu fosse a pátria, ter-me-ia posto do lado de fora do quartel a pontapé. A pátria, porém, foi condescendente e disse-me vem, aqui também há lugar para gente grotesca, irrisória, caricata. Não te importas de endireitar a boina ou também tu sofres do efeito Föhn? Deveria evitar o recurso à prosopopeia, mas é o que se arranja. O que eu gostaria mesmo de saber era onde meti o raio da caderneta. Deve estar na outra gaveta.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Um Janus bifronte

Se Setembro fosse apenas a anunciação de um Outono benévolo, se não passasse de um declinar lento do Estio mergulhado na fragilidade da velhice, hoje seria um belo dia. Foi com este pensamento que me levantei e me preparei para enfrentar o inevitável, que como um Janus bifronte, se estende inexplicavelmente para o passado e para o futuro, a tudo contaminando com o ranço da necessidade. Na comunicação social, devotos de várias confissões defrontam-se sobre festividades, rituais e liturgias, como se alguma coisa de decisivo se tratasse. Há nos seres humanos uma tendência inultrapassável para a hipérbole, esquecendo que a morte a tudo acaba por tornar igual. Aquilo que inflama os corações hoje, não merecerá mais do que um encolher de ombros amanhã e, daqui a umas semanas, só será lembrado por exaltados que ainda não descobriram toda a caridade que existe num tranquilizante. Hoje espreitei as torres do castelo, depois olhei para o friso das orquídeas, já quase todas sem flor. Exceptua-se a branca que está em floração contínua há mais de ano e meio. Na avenida, passa um casal. Vão presos na indiferença que os consome, fiéis ao destino com que a vida, escrava do imperativo da multiplicação, os enganou. O sol dispara raios de aço sobre as paredes da escola aqui ao lado, elas abrem gretas e sangram lentamente, cobrindo com o véu do silêncio a dor que as dilacera.