sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pensamentos

Ocupo o tempo não sei se em jogos florais se em guerras do Alecrim e da Manjerona. Como um pedinte que não pode abandonar a esquina onde recebe no chapéu roto as moedas com que transeuntes indiferentes aliviam a consciência, também eu, movido pela estrita necessidade, vivo num universo de mais pura irrelevância, concebido por um génio maligno, que tem ao seu serviço legiões de espíritos impuros. Caso exista um céu e que aos homens seja dado conquistá-lo, muito difícil me parece a tarefa, tendo de viver em lugar onde aquele que não se nomeia ordena, meticuloso, o caos. Este pensamento sombrio chegou-me depois de outro mais luminoso. Olhei para o Sol, para a luz, para o revérbero das paredes e disse-me que talvez este ano haja Verão de S. Martinho. Contrariamente ao Verão propriamente dito, o do santo alegra-me. Num leilão de livros online, vejo um livro de um jesuíta que foi meu professor. Uma das grandes figuras da cultura portuguesa do século passado. O seu livro, porém, vale à partida 1 euro, embora o mais provável é que não valha nada. É o mercado a funcionar. Também eu me leiloaria, não fora a inutilidade do gesto. Assim, em vez de me sujeitar a licitações fui comer uma broa dos santos, coisa que aqui tem maior culto e arrasta mais devoção do que os próprios santos do altar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A felicidade da falência

O dia acrepuscula-se não tarda. Ainda o sol está no horizonte e a luz já é frouxa, arrastando tonalidades de sombra e recordações da noite que há-de chegar. Atravessei a cidade várias vezes. Fui e vim, fingindo ter um destino. Não tenho destino, tenho necessidades, e são elas que me fazem ir e vir. Não as tivesse e seria inerte como uma estátua, imóvel como uma rocha que lançou as raízes no fundo da terra. E nessa pura imobilidade estaria toda a minha perfeição. Perfeito é o que não se move, que não muda. Seja como for, não é o meu caso, que a necessidade torna volúvel. Também os pássaros meus vizinhos são dados à imperfeição. Voam em círculos, ora largos, ora apertados, desenham figuras de ócio com as asas, planam como surfistas que cavalgam as ondas. E cantam. Tento decifrar-lhes a linguagem, mas no momento em que parece que lhe descubro um sentido, um novo gorjeio lança-me na incerteza, deixa-me perplexo, até que reconheço que falhei mais uma vez. Todos os dias elejo uma actividade em que seja impossível ter sucesso, aplico-me a ela com denodo e vigor, até que chega o momento da derrota e eu sinto toda a felicidade que há na falência do próprio desvario. Então leio Und dieser Zustand verging nicht. Não percebo, mas na outra página está a tradução, a mais adequada das traduções a esse estado que me acompanha em cada falência que construo com o ânimo de um conquistador.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Paixões vulgares

De manhã fui de tratar de assuntos do carro. Tudo agora obedece a uma organização que se pretende eficaz e protectora. Valha a verdade que os funcionários não são muito eficientes no cumprimento de regras de protecção, como se lhes faltasse a fé no credo sanitário que nos guia. Assunto tratado, rumei para a minha secretária onde me esperam mil insignificâncias e outras tantas minudências, com as quais atendo aos ditames da necessidade. Faço-o, ao atendimento, não só na secretária, mas também na entrega à pura representação de um papel para o qual me falta o talento e, com a passagem dos dias, o ânimo para não deixar morrer de fome a ficção com que entretive a existência. Com a pandemia e o uso da máscara, quase me sinto um velho actor grego. Ia mentir, mais uma vez, ao leitor. Estava pronto para escrever que não sabia se represento comédias ou tragédias. Eu sei. Tendo em conta quem sou, a tragédia, reservada aos caracteres nobres, está-me interdita. Apenas posso representar comédias, só me cabem as paixões dos homens vulgares. Dou por mim a escrever com o dedo no vidro que cobre o tampo da secretária. Depois recordo-me que Cristo, na perícope da adúltera, escrevia com o dedo no chão. O que terá escrito no pó apenas Ele saberá. O que escrevi no vidro, nem eu sei. Preciso de tomar café e isso tem o mérito de evitar prolongar indefinidamente esta conversa inútil.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os dias decrescem

Como um fósforo que mal se acende e logo o vento apaga, o dia amanheceu iluminado por um fogo descido do céu. Olhei-o surpreso, ainda mal refeito daquele momento de estupor que cai sobre mim ao acordar, mas de imediato as nuvens em tropel tomaram conta do firmamento, cobrindo a terra com uma mantilha de cinza. Outubro, esse mês de amenidades e prenúncios, caminha para o fim, enquanto os dias se estreitam e as noites erguem asas cada vez maiores. Vejo vultos na rua, gente com afazeres, alunos esquecidos das aulas, homens em trânsito entre negócios, mulheres que trazem na cara a faca da decepção, gente a quem a idade quebrou o vigor. Um cão corre à desfilada, no passeio do lado de lá. As torres do castelo, as duas que ainda avisto, contemplam com desdém a cidade. Hoje evitei as notícias logo pela manhã. Talvez tivesse deixado de crer que a leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno. A frase de Hegel fascinou-me em tempos, mas o deus que ali se cultua, descobri-o, é perverso, vingativo, e o seu odor não é o do incenso, mas o do enxofre. Olho a avenida, os carros passam, uns adolescentes trocam palavras agudas, enquanto eu penso que a cidade onde vivo é uma aldeia que bem merecia ser elevada a vila. Tem um castelo e um rio, um jardim público, uma praça grande que serve de brasão. O que mais precisará?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Uma Antígona melancólica

Olhei para um livro do Régio que tinha na secretária e ri-me do título, As Raízes do Futuro. Quando se chega a certa altura da vida, aquilo que era um mero pressentimento torna-se uma realidade iminente. Pouco interesse para o caso o tamanho da iminência. O pior nem é isso, mas a pergunta sobre o que se fez nesses dias em que havia um futuro, ou talvez nem seja nada disso e a única coisa a fazer seja celebrar o dia, beber o cálice até ao fim. Isto contou-me a Lu, quando me encontrou e convidou para tomar café com ela. Perguntei-lhe pela irmã, disse-me que fora apenas um susto, que tudo lhe ia bem e logo encerrou o assunto. Estava inclinada para a confidência e para a melancolia, coisa muito rara nela. Talvez as Antígonas devam morrer jovens, pensei, enquanto ela discorria sobre a existência, num exercício que parecia reunir a contabilidade e a confissão. Ouvi-a em silêncio, na minha mente perpassavam imagens dela quando nova. O tempo é sempre devastador, ouvi-a dizer. Respondi que ela não se podia queixar. Deixa-te disso, já não temos idade para galanteios desses. Depois, calou-se, olhou-me e exclamou: agradeço-te. Apesar de tudo faz-me bem. Rimo-nos e eu acrescentei temos de fingir. Sim é o que nos resta, disse. Saímos do café e separámo-nos. Ela foi à vida dela e eu comprar uma solução hidroalcoólica para desinfectar o que tiver a desinfectar.

domingo, 25 de outubro de 2020

Luz imóvel

A luz que ilumina a avenida, curvada à cinza que se desprende do exército de nuvens, dá uma estranha ilusão de imobilidade, como se o tempo tivesse suspendido a voracidade com que devora os seus filhos e se recusasse a passar. Imagino que o sentimento da passagem do tempo se deve todo ele às metamorfoses da luz, como se estas fossem sinalizadores de que não é na eternidade que vivemos, mas que tudo tem um princípio e um fim. Uma mulher vestida de preto, atravessa a passadeira. Outra arrasta atrás de si, pelo passeio molhado, um cão. Vestem-se de invernia. Lençóis de folhas mortas estendem-se junto aos passeios, enquanto os carros passam endomingados, uns à procura de um lugar para descansar, outros a dirigirem-se para outro lado, como se os seus condutores tivessem um destino, uma Penélope à sua espera, uma guerra para combater. Talvez estejam apenas atrasados para a Missa do meio-dia, aonde vão de consciência contrita e certos da indulgência que hão-de receber as iniquidades que, durante a semana, não se esqueceram de realizar. Um raio de luz mais intenso atravessou a atmosfera e fendeu a realidade, o tempo recomeçou a sua caminhada e o pequeno encanto de há minutos estilhaçou-se.

sábado, 24 de outubro de 2020

Triste tristeza

Suspendo a música e o sábado abre-se num vale de triste tristeza. Não tens vergonha de um truque tão fácil? Olho para o homúnculo que proferiu estas palavras e hesito entre ordenar que se vá deitar na caverna da minha consciência ou começar uma discussão com ele. Acabo por lhe responder e pergunto-lhe se ele queria que eu dissesse alegre tristeza. Depois, antes que abrisse a boca, fiz-lhe um gesto imperativo e ele desapareceu. Nem sempre as coisas são assim tão fáceis. Daqui a pouco irei a casa da minha mãe. Terei máscara, ela também. Impedirei que se aproxime de mim, pois não se sabe se sou um filho radioactivo e ela já não tem idade para estar perto da radioactividade. A seguir sairei e caminharei ao deus-dará, que é aquilo que tenho feito a vida toda, mesmo que eu o disfarce, mesmo que eu finja, nunca o meu caminho foi outro do que ir e vir à toa, sem destino nem propósito. Deixa-te de ficções. Voltaste, perguntei ao homúnculo. Voltei. Revolvem-me o estômago as tuas tiradas patéticas. Um pouco de pathos no discurso fica bem, retruco. Olhei para a cinza que envolve a rua e fiquei a meditar na fealdade do verbo retorquir. Os gramáticos, talvez por ociosidade, classificam os verbos em regulares e irregulares. Uma classificação miserável para esconder o moralismo que há neles. O que terão, os gramáticos, contra os modos de vida irregulares? Se fosse gramático, classificaria os verbos entre belos, horrendos e os que nem se dá por eles. Esta é a verdade crua. Muitos verbos passam por nós e nem damos por eles, falta-lhes a beleza que nos prende ou a fealdade que nos afasta, quando afasta. A campainha tocou. As minhas netas acabam de chegar. Correm para mim e o homúnculo assustado foi dormir.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Desactualizado e obsoleto

O Office informa-me que tem disponíveis actualizações, mas há que fechar algumas aplicações. É um mundo quase perfeito. Sê-lo-ia se também eu me pudesse ligar à rede, encerrar algumas aplicações, enquanto instalava actualizações que haveriam de fazer de mim o mais actual dos seres ao cimo deste pobre planeta. Digo-o com a máxima seriedade. Olho-me no espelho e, mesmo com máscara, não consigo esconder quanto as minhas aplicações estão desactualizadas. Isto quanto ao software. Quanto ao hardware a única palavra decente para me descrever é obsoleto. Sobre o meu estado de obsolescência há diversas teorias. Uma defende que me fui tornando obsoleto com o passar dos anos. É uma teoria sensata, mas benévola. Outra, menos benévola e menos sensata, estará mais próxima da verdade. Já nasci obsoleto. Nasci pronto para ser descontinuado. Há pessoas que nascem voltadas para o futuro. Eu nasci voltado para o passado. Não é que o passado seja um lugar mais aprazível que o futuro, mas é o horizonte que me coube. Esta conversa não tem pés nem cabeça, isso, todavia, é um efeito colateral de ser sexta-feira. Tenho de ir à rua. Não vou aglomerar-me, será que preciso de pôr máscara? Espirro. Uma, duas, três vezes. Uma dúvida abre-se no meu espírito. Estes espirros são sinais de desactualização do software ou da obsolescência do hardware? Cala-te, digo-me. Obedeço.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sacrifício ritual

Cheguei a casa exausto. Sentei-me em frente à televisão e liguei-a num canal desportivo. Homens trepam por uma montanha cavalgando bicicletas resplandecentes. Desenham-se-lhes rictos estranhos nos rostos. O cansaço, a luta contra o declive, a contabilidade de quem vai à frente ou atrás, tudo isso rouba-lhes a contemplação das paisagens magníficas que os envolvem e assistem indiferentes ao seu sofrimento, ao sacrifício ritual que os leva ao altar, onde, por um passe de mágica, se transformam de vítimas propiciatórias em sacerdotes escolhidos pelos deuses, para oficiar as cerimónias em seu louvor. Recomponho-me, respiro fundo, desligo a televisão e deixo os ciclistas entregues aos segredos da montanha, presos aos olhos dos espectadores que os aclamam como se fossem um exército vitorioso chegado do campo de batalha. Eles ainda não sabem que esse esforço desmedido é inútil. De pouco lhes servirá o nome num registo que o tempo fará esquecer. Essa inocência engrandece-os, pois toda a grandeza nasce de um não saber, de uma virgindade existencial que mergulha incauta nas águas turvas da vida. Hoje atravessei a cidade várias vezes. Nem dei por ela. Ela também não deu por mim, o que nos reconcilia. Reparo que as folhas das acácias começam a amarelecer. Têm um ritmo diferente das tílias e dos jacarandás. Cada coisa terá o seu ritmo, mas um maestro invisível subjuga-as à sua batuta para que uma música tensa e vibrante se erga da terra. O sol brilha anémico, alunos de um centro de línguas esperam agitados o começo da aula e eu esqueço-me dos pensamentos que me assaltam. As nuvens lembram grandes transatlânticos à deriva no oceano sombrio do céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ausência de sentido

O tempo desbarbariza-se. Há nuvens, vai chovendo, mas o vento sopra com mansidão e, no céu, lagos de azul deixam o sol chegar à terra. No campo de jogos da escola vizinha, um grupo de adolescentes corre sem pressa, num ritual de aquecimento que talvez anteceda algum jogo. Medito nas coisas que, com o tempo, se me foram tornando incompreensíveis. É possível que a morte não seja uma determinação biológica, mas um evento semântico. Quando a realidade perder sentido, então a morte chega para resgatar a pessoa da turbulência em que vive trazida pela ausência de significação com que o mundo se revestiu. Tudo é mais confuso do que se pensa e talvez não haja coisa mais obscura do que as razões que movem a morte. Um raio de sol ilumina a frota de nuvens que atravessa o meu horizonte. Elas resplandecem, enquanto eu penso no que tenha para fazer ainda hoje. Uma árvore podada estende os dedos curtos para o céu, mas nenhum anjo poisa nela. Os adolescentes recolheram-se, os carros passam na avenida, as pessoas entram e saem dos cafés, e eu olho para as páginas de um livro em que se discute a vexata quaestio se uma máquina pode pensar. Eu sei que não posso, mas não sou uma máquina.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

História de uma desconhecida

Entretive a manhã com certos problemas cuja solução atormenta os homens há muito. Não se pense que estive dedicado à sua resolução. Nem pensar. Entreguei-me apenas a torná-los claros para os distribuir a quem os queira apanhar. Ninguém, por certo. Valeu-me o toque da campainha. Era o correio. Trazia-me um embrulho com livros que comprara num alfarrabista online. Dois deles pertencem àquela colecção de capa amarela da Editorial Minerva. São edições do início dos anos sessenta do século passado. Um não foi aberto. Comprado na Bertrand, da Rua Garrett, custou 22$00. Não faço ideia quem seja o autor, Orio Vergani. O outro está aberto, possui uma assinatura feminina e a data de 13 de Abril de 1972. Quem foi a autora, Florence Barclay, também desconheço. Comprei os livros apenas porque a capa me agradou e o seu preço não era propício a arrependimentos e contrições. Talvez os venha a ler ou talvez os arrume e me esqueça deles e, quando um dia os meus livros forem parar a um alfarrabista, quem os descobrir vai dizer que um nunca foi lido, pois continuará fechado, e o outro pertencia a uma mulher, o que sendo verdade já não será toda a verdade. Penso no que se terá passado naquele longínquo 13 de Abril. Talvez ela tenha dado um salto a uma livraria, talvez alguma amiga se tenha lembrado do seu aniversário, talvez um apaixonado tenha encontrado na dádiva pouco imaginativa de um livro a expressão do seu amor. Porventura foi apenas uma mãe – aliás de origem estrangeira – que tenha oferecido aquele livro para completar a educação sentimental da filha. Continua a chover e não tarda terei de ir falar sobre questões que não interessam a ninguém que me vai ouvir. Se lhes falasse da antiga dona do livro, mesmo desconhecendo-a, seria outro o seu interesse e entusiasmo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sentimento num dia de chuva

Chove. A água interpõe entre os meus olhos e o hospital um véu de cinza. Tudo o que vejo é digno de um daqueles filmes sombrios que vinham do leste europeu. São imagens de exaustão, de um cansaço trazido pelos fungos às paredes dos edifícios. Procuro um nome para dar ao sentimento que toma conta de mim, mas não o encontro. São tão poucas as palavras que possuímos, mesmo aqueles que usam um vocabulário mais vasto, para uma realidade demasiado extensa, mesmo que essa realidade não seja mais do que a gama dos sentimentos humanos. Recebo uma mensagem da Protecção Civil. Avisa-me que vai haver chuva e vento forte nas próximas 48 horas. Risco de inundações. E eu debito um credo apropriado. Creio na Protecção Civil toda poderosa, informadora das ocorrências no céu e na terra, creio nos seus emails e sms. Creio…. De súbito, a memória irrompe neste devaneio patético e transporta-me para o tempo em que havia grandes inundações no Tejo. Nessa desgraça adivinhava-se uma grandeza sem voz, ânimos temperados pelo confronto com o desatino da natureza. Agora tudo se tornou um problema de gestão de caudais. Ao escrever isto não consigo deixar de sorrir. Também eu preciso de introduzir um programa de gestão da verborreia. Um dos homúnculos que habite na caverna da minha mente diz mesmo que nunca se viu quem tanto escrevesse sem ter nada para dizer. E isto é a pura verdade. Se eu tivesse alguma coisa para dizer, calava-me.

domingo, 18 de outubro de 2020

É falso tudo o que vou contar

Tudo o que vou contar é falso. Se o leitor acreditar numa palavra que seja, fica por sua conta e risco. Eu bem o avisei. Ontem fui visitar a minha mãe e, em vez de poluir a atmosfera com os gases do carro, pus os pés ao caminho. Saindo de casa dela, decidi que, também eu, tal como o velho genebrino Jean-Jacques me entregaria às minhas rêveries du promeneur solitaire. Pus-me a caminhar pela cidade, por sítios onde raramente ou nunca passo a pé. A certa altura a imaginação começa a importunar-me e a perguntar por que motivo, em dado momento da história do país, qualquer vilória, com poucos milhares de habitantes e uma existência tão cosmopolita como uma paróquia perdida sabe-se lá onde, quis tomar o nome de cidade. Não lhe soube responder e continuei a promenade. Quando passava diante de um cemitério, numa avenida que leva de uma rotunda a outra rotunda, que por sua vez levará a uma terceira, ocorreu-me um episódio da semana que tinha passado. Recebo uma chamada no telemóvel. Estou, respondo. É o senhor e declinam o meu primeiro nome. Ainda com bonomia digo o próprio. Aqui fala a Doutora… Ah, respondi, o seu pai conseguiu pôr-lhe o nome de Doutora. Deve ser muito nova. Quando fui ao registo civil para registar a minha filha também quis pôr-lhe o nome de Doutora, mas não me deixaram. Cheguei lá e disse quero registar a minha filha recém-nascida. E o nome, perguntou-me o funcionário já entradote. Quero que se chame Doutora e acrescentei dois apelidos da mãe e dois do pai, só para ela treinar a letra quando, na escola, escrevesse o nome. Não pode, retorquiu. Doutora não consta da lista de nomes autorizados. Não? Olhe, acrescentei, não estava preparado para isso. Que nome lhe hei-de pôr? Pode chamar-lhe Isabel, Madalena, Teresa, Sofia, Fátima ou Maria, que era o nome da Nocha Chenhora, foi assim que ele pronunciou. Eu respondi, se era o nome da Nocha Chenhora, fica Maria, e Maria ficou. Os tempos mudaram e agora há muitos pais a porem como nome aos filhos Doutor e Doutora. Lembrei-me de uma outra história, tão verídica como esta, de um rapaz também ele doutor e presidente da junta, mas talvez a conte num dia destes, se numa nova promenade me entregar a nova rêverie. Tudo o que narrei é falso, repito. Se acreditou numa só palavra, não culpe este pobre narrador, um mitómano contumaz, cuja papel é inventar coisas que nunca se passam.

sábado, 17 de outubro de 2020

Um sábado perfeito

No pequeno bosque da escola ao lado, as árvores petrificadas lembram estátuas esquecidas de uma civilização há muito abandonada. São símbolos a lembrar o passado, mas escondem a chave para os decifrar. O vento suspendeu a sua agitação e o sábado deixa-se invadir por uma luz tocada pela anemia. Olho o arvoredo e deixo-me devanear sobre a perfeição que existe em certos dias de Outono. Sou um ser outonal, não porque a idade assim o diz, mas porque sempre o fui. Por vezes, agrada-me a inocência de seres primaveris. Raramente a minha disposição é compatível com a exuberância dos estivais. Aos invernosos, olho-os com reverência, mas deixo-os pairar a uma distância conveniente. A vida é um exercício difícil de aproximações e distâncias, de procura de afinidades electivas, de gestão do espaço, no qual convém desenhar fronteiras que em caso algum devem ser atravessadas, mesmo se se tem passaporte. Dou uma vista de olhos pela imprensa, um velho hábito que não consigo erradicar, apesar de se ter tornado inútil. Deveria chamar-lhe um vício. O mundo continua a ser mundo e naquilo que leio poucas razões encontro para que não me torne num misantropo inflexível. Tivessem os homens a perfeição dos cedros, dos pinheiros, dos ciprestes que avisto e talvez a passagem da espécie pelo planeta não fosse um cortejo de indignidades. O vento voltou a soprar e levou com ele todos os meus pensamentos. Fico-lhe grato, pois melhor do que pensar é não pensar, ter a inocência de uma árvore presa ao seu silêncio.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Uma tarde animada

Mal entrei no Facebook deparei-me com um post de uma amiga cá de casa a agradecer sensibilizada a todos aqueles que lhe estão a endereçar felicitações pelo aniversário. Ao mesmo tempo, aproveitou a ocasião para informar que não fazia anos. Será mais tarde, para a próxima semana. Ainda bem que me eximo de distribuir parabéns pelo Facebook. Depois, saí e fui buscar a minha neta mais velha à estação da rodoviária. Foi a primeira viagem que fez sozinha, com mil recomendações parentais, pedido de guarda ao motorista, controlo da mãe e da avó através do telemóvel e os avós no terminal rodoviário à espera do expresso, ainda mal ele tinha saído de Lisboa, não fosse a viagem ser feita a 300 km por hora e a pobre adolescente ter de esperar num sítio inóspito, digno de uma distopia. Pobre, pois o que há-de ser alguém que, na adolescência, tem de ler coisas como estas: A definição de quociente entre dois quaisquer números racionais, sendo o divisor não nulo, coincide com a definição já dada para o quociente entre dois números racionais não negativos. Foi isto que li num livro que ela tem aberto ao lado do caderno em que escreve, enquanto a avó a massacra com exercícios, que metem mais e menos, quocientes, fracções e o que mais o peçonhento com pés de cabra há-de inventar para a perdição de uma rapariga numa tarde sem aulas. Comentei entre dentes que me parecia péssima literatura. Quando comecei a ler fiquei entusiasmado, o argumento tinha mistério. Qual será a definição de…? Fiquei suspenso, confesso. Chego ao fim e descubro que coincide com outra definição já dada. Afinal o prosador, sem imaginação, termina a narrativa com o mesmo desenlace do que a anterior. Para a compensar da tortura já marquei mesa para o restaurante de que ela mais gosta aqui na zona. Tremo só de pensar a hora em que terei de lhe ensinar a fazer inspectores de circunstâncias, ou a discutir se a liberdade da vontade é compatível com uma natureza completamente determinada, ou obrigá-la a escolher entre o imperativo categórico e o princípio de utilidade para avaliar a bondade das suas acções. Como se vê, está a ser uma tarde de sexta-feira muito animada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Uma súbita nostalgia

Não é implausível que, uma vez ou outra, no céu da minha consciência perpasse uma nuvem de nostalgia. Não uma nostalgia vulgar por alguma coisa que se viveu ou amou, mas pela mais autêntica das nostalgias, aquela que nasce de um amor nunca tido ou de uma coisa jamais realizada. Foi isso o que me aconteceu há dias, continuou Rogélio, um dos meus velhos amigos, quando vi à venda um livro do italiano Giovanni Papini. Nunca o lera, mas recordei as capas soberbas com que as Edições Livros do Brasil o punham à disposição do público português. Ao vê-lo, trata-se de Gog, na montra de uma papelaria esquecida numa vila remota do interior, nem hesitei. Uma estranha ânsia tinha tomado conta de mim, pois temi que, mesmo sem ninguém dentro do pobre estabelecimento, além do proprietário, algum cliente secreto ou invisível se interpusesse entre mim e o objecto do meu desejo. Ao pegar-lhe senti uma comoção, das mais autênticas que me tenho imaginado, e folheei-o com avidez. Há dias que o arrasto para onde quer que vá. Aqui Rogélio mostrou-me o livro. Estava ferozmente anotado nas margens com uma letra ilegível que reconheci ser a dele. É verdade que esta história não interessa a ninguém, mas também, embora sem nostalgia e de coração seco, me decidi a procurar o livro no primeiro alfarrabista que o oferecesse a um preço decente. Chegou-me hoje, com evidências claras de as suas páginas nunca terem suportado o peso do olhar de um leitor. Hesito por onde começar. Pela visita de Gog a Einstein, ou a Lenine, ou a Freud? Talvez comece pela que fez a Knut Hamsun. Ou talvez nem o leia ou nem sequer o tenha comprado, apenas tenha sonhado tudo isto quando, sentando-me diante do computador para trabalhar na salvação da humanidade, adormeci, até que alguém me comunicou que o meu ressonar deveria incomodar os vizinhos do prédio mais distante da rua.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

De perder uma alma

Antes de termos chegado ao lugar onde estamos, na escola aqui ao lado havia um conjunto musical, a que eu dava o nome de grupo de baile. Nas tardes de quarta-feira, a banda dedicava-se a ensaiar êxitos dos anos sessenta e setenta do século passado, num exercício de nostalgia que sempre achei estranho num sítio povoado por gente nascida depois do virar o milénio. O confinamento emudeceu aqueles bravos rapazes devotos da Nossa Senhora da Boa Memória, um deles, o único que identifico, chegou a estudar comigo. Este ano ainda não os ouvi, presumo que não recuperaram nem a voz nem a vontade de viajar para o tempo em que, conjecturo, terão sido felizes. Isto, contudo, sou eu a especular. Não os oiço, como não vejo há uns dias os anjos que vivem no telhado do prédio do lado. Imagino que se foram confinar para algum lugar longe dos homens, antes que sejam contaminados e lancem o caos nas urgências celestes, onde os anjos tratam as suas afecções mais persistentes, embora, como se sabe, eles não necessitem de ir para os cuidados intensivos. A sua condição não lhes permite grandes males e, por isso, não precisam de grandes remédios. O padre Lodo ligou-me esta manhã. Não devia ter escrito ontem, sublinhou o não, que os meus pecados eram insignificantes, que só Deus tem o metro para medir a significância pecaminosa de cada um. Estaria eu, disse-me ele, prestes a cair na tentação da blasfémia. Estava preocupado com a minha alma. Disse-lhe que não se preocupasse com ela, caso eu tivesse uma. Aqui faltou-me um módico de caridade e não consegui evitar um traço agnóstico suspenso sobre a conversa. Fora um exercício de pura humildade, declarei em tom compungido. Depois, acrescentei, quando for a Lisboa, ligo-lhe. Vamos jantar com o grupo habitual. Desta vez, respondeu com o seu português italianizado, tem de ser aquele que tem uns pastéis de massa tenra de fazer perder uma alma. Esse mesmo, respondi.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Tudo tem consequências

Por que razão gostamos daquilo que gostamos? Enquanto me entrego a uma corveia composta por gráficos, tabelas, análises de resultados e uma panóplia de coisas que, espero, me sejam averbadas no registo celeste para desconto dos meus insignificantes pecados, tenho estado a ouvir o que se chama música minimalista. Philip Glass, Steve Reich, John Adams, Terry Riley. Há quem deteste, mas sobre mim o movimento repetitivo de pequenos trechos musicais durante longo tempo tem um efeito encantatório. Quase que vejo nascerem mitos de dentro dessa música, histórias que irão ser contadas de geração em geração, os feitos de deuses ou as travessuras maldosas de seres gerados pela imaginação. É por isso que gosto dessa música. Não o sabia antes de o ter inventado para o escrever aqui. Não são poucas as coisas que só as sabemos na hora em que as escrevemos. Um sol outonal brilha sobre o pequeno bosque da escola ao lado, enquanto as folhas das acácias vão e vêm batidas por um vento que, parece-me, corre de norte. Daqui a pouco irei falar sobre a verdade e o cepticismo. Com tantas coisas cintilantes debaixo do sol, logo me haveria de calhar essa floração das trevas. Estou há horas para entrar na minha conta de homebanking. A cada tentativa, sou informado que é um erro, a página não existe. Algum deus desavindo com os mortais, nascido da música repetitiva que tenho estado a ouvir, terá feito desaparecer o banco. O meu amigo Rogélio bem me avisa. Cuidado, tudo o que se faça tem consequências. Nunca imaginei que o meu mau gosto musical fosse a causa de desaparecimento de um banco, mas é o que constato. Só espero que não seja preciso sacrificar nenhuma Ifigénia, para que o deus o devolva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um Zé Ninguém em dia de S. Nunca

Quanto tempo faltará para estarmos outra vez todos confinados? Esta pergunta não me pertence. Escutei-a por acaso na rua, ao passar por duas pessoas que, sem máscara, trocavam palavras, preocupações, temores e, certamente, gotículas, como agora, de uma forma com ademanes de erudição, se chamam os populares perdigotos. Recebo uma mensagem a dizer urgente. Olho para ela e digo-me que bem pode esperar. Se fosse dar urgência a tudo o que se diz urgente, acabaria por morrer de exaustão. A maior parte das coisas urgentes bem se podem tratar no dia de S. Nunca à tarde. Este dia do calendário litúrgico tem um correspondente em personagem teatral. Quando perguntado quem é, o Romeiro diz Ninguém. Não se pense, todavia, que o senhor Ninguém se finou nas páginas do Frei Luís de Sousa. Os tradutores portugueses amam-no verdadeiramente, desde que se chame Zé. Escuta, Zé Ninguém, uma diatribe de Wilhelm Reich, e E Agora, Zé Ninguém?, um romance de Hans Fallada. Como o leitor compreenderá ser um Zé Ninguém é uma chatice. Ou se está a receber ordens ou a ser interrogado. Todavia a pergunta com que se abriu este texto merece uma resposta metafísica. Estamos confinados desde sempre. Essa é a condição humana, a história da caverna de Platão. O confinamento decretado é apenas um reconhecimento de direito daquilo que acontece de facto. O mais sensato será acabar o escrito por aqui. Ninguém vai perceber o que acabou de ser dito, nem sequer o narrador ou, em especial esse, o autor. Por mim, corrigiria o Garrett e quando o Romeiro, esmagado pela realidade do confinamento, escutasse a pergunta sacramental, diria Zé Ninguém, sou um Zé Ninguém. E isto estaria muito mais de acordo com a sua condição. Pena o Garrett ter-se esquecido de me telefonar.

domingo, 11 de outubro de 2020

Paramedicamento

Os domingos são dias propícios a uma sentimentalidade espúria, a qual deveria ser ferozmente erradicada. Umas vezes, é a melancolia do domingo à tarde, quando a sombra negra da segunda-feira, com a sua penosa corveia, se ergue no horizonte. Outras, é uma nostalgia pelo que passou, e os domingos são construídos na memória como dias em que se passavam coisas. Na verdade, pouco se passava ou, mesmo que se passasse muito, tudo isso era tão irrisório que dá vontade de sorrir. Há pouco, fiquei a ver o triunfo de um ciclista português numa etapa da Volta a Itália, do Giro, como dizem entendidos e aficionados. Nada sei de ciclismo, mas gosto. Isto deve-se a uma influência paterna que me levava a ver a passagem dos ciclistas da Volta a Portugal. Era um espectáculo veloz. O tempo que eles levavam a passar era assombrosamente pequeno comparado com aquele que se esvaía na espera, mas tratava-se sempre de um acontecimento colorido, e eu gostava imenso. Um dia o meu pai levou-me a ver ciclismo em pista, em Alpiarça. Estávamos em Santarém e fomos lá. O que se passou, quem ganhou e quem perdeu, já o esqueci há muito. Saí de casa ainda não tinha chegado o meio-dia. Estava calor. Fui a uma parafarmácia comprar um paramedicamento. Um paramedicamento é uma daquelas coisas que não servem para nada, mas que convém ter em casa. Nunca se sabe quando são precisos. O facto de as ter tranquiliza o espírito. Quando a menina me perguntou o que desejava, estive quase a responder queria um placebo para a urticária. Não respondi, pois tive medo que ela me dissesse que não sabia o que era um placebo e que eu tivesse de informar que também não fazia a mínima ideia do que fosse a urticária. Das velhas colunas da minha aparelhagem sai o som de Lontano, uma peça do compositor György Ligeti. Reconcilia-me com o domingo e com a menina que não saberia o que era um placebo. Chega-me um vídeo do meu neto a andar de trotineta. Ainda não tem idade, penso, mas quem não tem idade para isso sou eu.

sábado, 10 de outubro de 2020

Um ser imponderável

Hoje, lamento, mas nada tenho para contar. Levantei-me nem cedo nem tarde, a balança dos sábados esteve amena e devolveu-me um peso dentro do que houvera sido acordado. Minto. Como pode um narrador ter peso? Sou um ser imponderável, apenas um conjunto de caracteres no monitor. Seres virtuais não têm peso nem sofrem dos efeitos da gravidade. São como os anjos destituídos de corpo. O autor, esse tem peso. Talvez mais do que devia. Também tem corpo, mas sobre isso não faço comentários. Sou um narrador prudente. Hoje está de mau humor. Ouvi-o resmonear contra as calças. Por que raio continuava a comprar calças com botões em vez de fechos. Não faço ideia o que tem contra os botões, mas isto mostra o nível intelectual das suas preocupações. Tive de ir ao supermercado. Encontrei a Lu. Estava abatida. Apesar da máscara percebi que não era a velha Antígona pronta para desafiar a ordem de um qualquer Creonte. Nos seus olhos, havia uma sombra e não fogo. Estou preocupada com a minha irmã. A irmã é a Marília, a que era do Dirceu. Não anda nada bem, agora que parecia feliz. Fiz silêncio e ela especulou sobre o destino. Eu ouvi até que nos despedimos. Fui ainda comprar duas garrafas de vinho e dirigi-me para a caixa para pagar. A menina não me pareceu nenhuma Antígona, nem Ismene e muito menos uma Electra. Era apenas a menina da caixa e nisso estava toda a sua grandeza. Quando voltei o autor continuava a barafustar pelos cantos da casa contra a ordem do mundo e a desordem que ia na sua cabeça, digo eu.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Fora eu uma árvore

Cheguei cansado ao entardecer desta sexta-feira, mas também a semana está tão pouco vigorosa quanto eu. A correria a que ela se entrega mal nasce só pode ter como consequência chegar ao fim com a língua de fora. Tenho pena das pobres semanas ajoujadas a um ritmo que não escolheram. Alguém me disse que não deveria antropomorfizar os seres não humanos. Respondi apenas que seria redundante a antropomorfizar os humanos, além de não me parecer boa ideia tornar os humanos ainda mais humanos. Basta ver o rol interminável de maldades e patifarias a que eles se entregam sem esse reforço de humanidade. Apesar das ameaças que pesam no horizonte, os tempos parecem ter voltado à normalidade. Da praceta chegam gritos verrumantes que ferem o estado de estupor em que me encontro. A criançada anda por ali, corre, grita, berra, enquanto as acácias, sem um grito, se deixam embalar pelo vento, balançando os ramos para cima e para baixo. Com o passar dos anos aumenta a minha admiração pela sábia indiferença com que as árvores olham para as coisas que as envolvem. Agora, umas funções do meu teclado decidiram declarar greve. Disse-lhes que era uma greve selvagem. Não se comoveram. Fora eu uma árvore e não teria problemas com teclados.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Contributos para a história do Rogélio

Perguntaram-me quem era o Rogélio que por aqui aparece. É sempre uma pergunta difícil de responder. Se me perguntarem quem sou eu, ver-me-ei em apuros para dar uma resposta com um módico de coerência, quanto mais quando se trata de uma terceira pessoa, e que pessoa. Conheci-o nos primeiros tempos da faculdade. Numa aula, fumava ele uma cigarrilha Café Creme, uma das suas imagens de marca, fez uma pergunta ao professor. Este perguntou-lhe o nome, ele debitou-o com tranquilidade, Rogélio. O professor então continuou dizendo ora veja Rogério… Aí o Rogélio interrompeu-o. Peço desculpa, professor, mas chamo-me Rogélio e não Rogério. Não me obrigue a contar a história do meu nome. O professor não obrigou, mas ele causou furor na turma com a lata da sua intervenção. Ficámos amigos. Ele é um autêntico coleccionador de ditos, máximas, apotegmas, aforismos e outras sentenças para uso diário e em situações extraordinárias. Os mais interessantes são da sua autoria. Acaba de ser anunciado a Nobel da literatura. Nunca li nada da senhora, mas a minha ignorância é infinita. O facto de muitos dos meus escritores favoritos, como Borges ou Kafka, não terem merecido a distinção deixa-me sempre de pé atrás. O remédio será pô-lo à frente, dir-me-ia o Rogélio, enquanto expelia uma baforada da sua inevitável cigarrilha. Não sem razão

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os limites do magnésio

Outubro perfaz hoje uma semana. Não sei o que possa fazer com esta constatação. Há pessoas que de qualquer coisa retiram utilidade, prazer, fortuna. A minha natureza não se acorda com préstimos e serventias e até da mais útil das coisas fabrico uma inutilidade. Sou um inutilitarista, para além de um improficiente. Há quem venda Platão para infelizes e Aristóteles para competitivos, eu prefiro ir comer uma fartura ali ao lado. Também tomo magnésio para as cãibras. Muito gostava eu de ser um realista ingénuo, de olhar para aquelas acácias, ainda esplendorosas, e crer que aquilo que vejo é mesmo acácias, mas temo que aquelas imagens a que chamo realidade não sejam mais do que um feixe de impressões na minha mente, ou, pior, que eu não passe de um cérebro numa cuba, que está a ser estimulado por um supercomputador para imaginar que está a ver acácias. Estes pensamentos demonstram, todavia, uma coisa. Se o magnésio combate as cãibras, não me ajuda no pensamento. Fica turvo e eu ainda não comprei um purificador de pensamentos. A realidade continua a ser minha inimiga. Os dias estão difíceis e Outubro ainda só tem uma semana.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Questões de mérito

Um pouco antes do crepúsculo irei caminhar. Não sei se será um exercício saudável, pois os trajectos disponíveis são partilhados com os escapes fumarentos de carros que precisam, também eles, de fazer exercício e libertar-se das toxinas que lhes enxameiam os motores. Mais do que libertar a toxidade que há no meu corpo, preciso de libertar a que me invade o espírito. Cada visita à realidade é um exercício penoso, mais penoso do que dar de comer a quem não tem fome. Encho-me de toxinas e o pensamento enviesa-se para a malevolência. Penso coisas que até eu me julgaria capaz de pensar. Cada um tem o que merece, diz nestas ocasiões o meu amigo Rogélio. Eu acabo por anuir. Um dia talvez explique como o conheci e, caso me recorde, poderei mesmo explicar o motivo de tão inusitado nome. Um acaso, posso adiantar. Fui levantar uma encomenda nada literária e acabei a comprar a minha quarta versão em português da Eneida de Vergílio, a segunda em poucos meses. Depois de uma traduzida por um professor de clássicas de Coimbra, agora uma traduzida por professores de clássicas Lisboa. Talvez seja isto a concorrência ou uma luta pela sobrevivência. Olho para o início do poema e deixo-me tocar não pelas dores do troiano, mas por expressões como praia de Lavínio ou violência dos deuses supernos. Estes deuses não cultivariam em excesso o amor e a misericórdia. Cobravam as ofensas, e como eles se ofendiam por coisa pouca, a um preço que dificilmente seria de saldo. Talvez também para estes heróis o destino não fosse mais do que a retribuição do seu mérito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Dores de crescimento

Acordei com algumas dores nas pernas. Nada que me causasse mais do que um pequeno incómodo, se deitado. Era uma injunção a que me levantasse. Cumpri a ordem. Tenho estas dores desde que me lembro de existir. Vão e vêm, umas vezes mais violentes, outras menos. Durante a infância e a adolescência, os médicos diziam que eram dores de crescimento. Seriam. Quando chegou a altura de parar de crescer, elas continuaram. Por volta dos cinquenta pedi ao médico que me seguia que pesquisasse a origem do mal. Fiz exames a isto e àquilo. Nada. O mal continuaria a ser um mistério. Ele, porém, não se atreveu a dizer que eram dores de crescimento. Enganou-se. Redondamente. Quando se passou dos velhos bilhetes de identidade, em que a menina do registo civil nos batia com a craveira na cabeça para determinar a altura, para os cartões de cidadão, onde toda a medida é electrónica, cresci três centímetros. Prova feita em dois registos diferentes. Grande é o desalento quando penso em tudo isto em que estou a pensar. Hoje, um dia em que deveria ter pensamentos elevados e patrióticos, penso em dores de crescimento. Seja como for, posso adiantar que sempre fui republicano, embora ache isso uma miserável cobardia. Deveria ser monárquico. Republicano, apenas se vivesse numa monarquia. Não tenho, porém, coração de talassa, nem a minha origem plebeia o aconselharia. Contento-me com o ir crescendo sempre que se muda o método de determinar a altura do cidadão. Com a evolução contínua da tecnologia, não admira que as dores de crescimento não me passem.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pura banalidade

Quando há pouco peguei num certo livro que tinha posto de lado tempos atrás verifiquei que havia nele vários marcadores. Não daqueles tradicionais, mas cartões e etiquetas que vou juntando para lhes fazer a vez. O cartão de uma churrasqueira take away, outro de um desentupidor de canos com o calendário de 2018, um terceiro de um restaurante nepalês em Lisboa, ainda outro que anuncia Charming rooms em Bilbau e, por fim, a etiqueta cartonada de uma marca de pólos, que ainda ostenta o tamanho, o preço e a loja onde o comprei. Por coisas como estas pode-se reconstruir uma vida e, como se vê, a minha é das mais banais que possam existir. Aliás, não se esperaria outra coisa. Há nos homens uma propensão para a distinção, mesmo o mais limitado se pretende distinto, diferenciado, pura singularidade. Ergue-se em heroísmos e a sua vida é repleta de feitos e façanhas. A imaginação não tem limites. Eu, pouco dotado de imaginação, não tenho proezas para apresentar no currículo, por isso colecciono numa caixa preta, ao lado de pilhas para comandos, tubos de cola seca, carregadores de telemóvel para mandar reciclar, colecciono, dizia, cartões com que marco os livros que outros escreveram. Hoje é domingo e as horas vão com tristeza pela avenida fora, cobertas de nuvens, atiçadas pelo vento, redemoinhando à volta das tílias, das acácias, dos jacarandás e de outras árvores cujo nome não me ocorre. Também elas, horas e árvores, fazem parte da banalidade que me envolve, e eu amo-as por isso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Vestir o ânimo

Estou há longos minutos a observar as árvores dos espaços envolventes. Quase imóveis, parecem estátuas que um divino escultor terá esculpido como símbolo de tudo o que há de misterioso no mundo. Há no arvoredo uma dignidade que escapa ao mundo animal. Neste, a inquietação da morte e a necessidade cruel tornam a vida uma manta onde se cosem truques e armadilhas para matar e sobreviver, um circo romano onde todos são à vez feras e cristãos. Contrariamente à volubilidade da vida animal, a existência das árvores é marcada pela constância, por uma fidelidade ao lugar, por uma elevação contínua, pelo silêncio com que deixam passar por elas os anos e as peripécias, sem que se lhes oiço um grito, um queixume, uma imprecação. Morrem de pé, como é dito na peça do asturiano Alejandro Casona, ou são traiçoeiramente abatidas pelos homens. Este prolongado fim de semana começa neste registo de melancolia, não porque esteja melancólico, mas porque é a tonalidade de espírito que melhor se adequa ao dia. Há muitos anos, numa conversa que nunca esqueci, alguém disse que deveríamos revestir o ânimo com o mesmo cuidado com que vestimos o corpo. O essencial é ter em atenção o tempo e, desse modo, há dias que devemos estar alegres, outros tristes. Em alguns devemos vestir a farda da ira, outras vezes o mais indicado é uma capa de nostalgia. Com o passar dos anos, fui descobrindo a sabedoria do conselho. São muito desavisadas as pessoas que se preocupam com o que lhes veste o corpo, mas andam pelas ruas com o ânimo nu, como se fossem indigentes e não houvesse lá por casa uma camisa de angústia ou um casaco de júbilo. Daqui a pouco ponho a gravata da melancolia e vou às compras. Logo terei cá o meu neto, e isso é o mais importante.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma tarde entre parêntesis

Mais e menos, abrir e fechar parêntesis, unidades e fracções. A mais de cem quilómetros de distância a minha neta mais velha está ser submetida a uma provação. Em videoconferência a avó soma avisos e injunções, dita-lhe exercícios, subtrai-lhe umas horas de brincadeira. Ela vai-se submetendo ao mundo do cálculo, à estratégia de aplicação de algoritmos, enquanto a cabeça devaneia lá por aqueles sítios onde, às sextas-feiras à tarde, se reúnem os espíritos adolescentes. Não sei se todo este admirável mundo novo será coisa boa. Está um maravilhoso dia de Outono. Ora chove, ora faz sol. O vento sopra agreste, enrola-se nos ramos das árvores, nos cabelos e saias das mulheres, grasna e cochicha por tudo o que é canto. As folhas secas desenham espirais no ar, enquanto as fracções se multiplicam e os números negativos tentam anular os positivos. Não, não é King que estão a jogar. Quando chegarão as raízes quadradas, pergunto-me. Agora fez-se silêncio, talvez todos os parêntesis abertos tenham sido fechados e as fracções somadas sejam unidades puras, inteiras, imaculadas, virginais. Talvez seja apenas o descanso antes da segunda vaga. O sol reverbera no telhado do pavilhão da escola ao lado, o ramalhar das árvores prende-me a atenção, o dia escorrega para a noite e a minha vida desliza para o nada, que é o sítio aonde tudo vai dar, mais soma menos subtracção, mais número inteiro menos fracção.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um dia octúbrico

Hoje está um dia verdadeiramente octúbrico, pensei enquanto uma chuva miúda descia sobre mim. Pena é que ainda não tenham inventado a palavra octúbrico, mas não vejo outra que possa designar a presença de Outubro neste primeiro dia do mês. Talvez alguém a tenha pronunciado ou mesmo escrito e eu não saiba. Muito vasta é a minha ignorância. Digo isto apenas para parecer humilde e não atrair sobre mim os maus espíritos que andam por aí a esvoaçar. Estive a oficiar durante duas horas ao ar livre. A máscara interpõe-se entre a minha voz e o mundo. Fico com a garganta arrasada. Chegado a casa, fui a uma das janelas para ver o que se passava na rua. Não se passava nada a não ser gente a passar, uns a pé e outros de carro. Olhei para os telhados dos prédios envolventes. Fiquei preocupado. Há uns dias que não vejo por lá os anjos que costumam poisar naqueles sítios. Talvez tenham ido em missão a algum sítio em dificuldade ou foram hospitalizados com o novo vírus. Nunca se sabe. Também é possível que se tenham disfarçado de pombos e andem por aí a esvoaçar, arrulhando por aqui e por ali. À saída do lugar de frutas e legumes onde entrei para comprar feijão-verde encontrei a Lu, a irmã da Marília do Dirceu. Estava risonha. Que a chuva a tinha impedido de acabar a caminhada. Disse isto com aquele seu ar de heroína grega, de Antígona que escapou às garras de Creonte, o que lhe diminui a faceta trágica, mas permitiu-lhe deixar um rasto de fogo no mundo. Tenho de me despachar e deixar de escrever idiotices. Esperam-me. Ainda tenho duas homilias para proferir. O pior é garganta.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Também eu sou competitivo

Leio que uma universidade católica pátria vai ministrar um curso de filosofia aos quadros superiores de um grupo empresarial francês dedicado à construção civil. O objectivo é aumentar a competitividade. Os sacerdotes são pessoas admiráveis e além de admiráveis são muito competitivos, e ainda mais o são se caíram no caldeirão da poção mágica a que vulgarmente se dá o nome de filosofia. Nada de ócios meditabundos e contemplativos. Coisa de gregos dados às filosofices. Há que ajudar o produto interno bruto, há que pôr Platão a render, Aristóteles a negociar e Descartes a trautear se compito, logo existo. Ponham também Tomás de Aquino a meditar sobre o papel das casas de banho na maximização dos lucros e Agostinho a fazer confissões sobre o problema do tempo no fracasso das vendas. Como o leitor pode constatar tenho uma grande inclinação para pecar, mas o dia não começou da melhor maneira. A manhã ocupei-a a ler pornografia. Sim, leu bem. Uma pornografia muito especial, onde não existem cenas de sexo, mas um conjunto de ideias malucas de pessoas que gostavam de ter o talento dos padres católicos que vendem filosofia a gestores da construção. Não têm, não passaram os olhos sobre aqueles textos difíceis e que geram ideias muito mais interessantes do que aquela pornografia a que sou instado a ler por um diabrete malévolo, sobrinho do deus enganador do senhor Descartes. Caro leitor, esqueça tudo o que leu e finja que este narrador não narrou aquilo que narrou. Se houver aí uns pedreiros, ou mesmo uns ajudantes, disponíveis, eu faço também um seminário sobre a metafísica do tijolo e a ética da argamassa. Também eu sou competitivo.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Sniff Game

Numa fotografia de Alfred Eisenstadt vêem-se vários de pares de jovens à saída da adolescência entregues a um Sniff Game. A ideia é fazer transitar um Kleenex de nariz para nariz, dando uma volta ao grupo sem que o lenço caia. O que vale é que a foto é de 1948 e ainda estavam longe as restrições à partilha de snifadelas. O que se passaria depois do jogo não me perguntem, pois nessa altura nem tinha nascido e falece-me a imaginação. A seguir ao almoço, para não ficar a aboborar numa cadeira diante de uns gráficos coloridos com que entretenho nestes dias a existência, fui à farmácia comprar máscaras para poder oficiar no sítio onde prego aos peixes. Eu sei que nestes dias de inovação, um tempo em que uma pessoa dá um pontapé numa pedra e saltam de lá meia dúzia de inovadores, fica mal alguém andar a sermonar, tal como se faz há séculos. Paciência, sou um velho conservador. Um acontecimento estranho ocorreu esta manhã na varanda e nos canteiros que circundam as janelas do escritório. Os muros estavam cheios de jovens pássaros – se não os ofendesse com a minha ignorância, diria que eram andorinhas – que, tanto quanto consegui perceber, estavam na sua primeira lição de voo. Atiravam-se, sob a supervisão de uns maiores, para o abismo e começavam a bater as asas. Já é a segunda vez que este ano assisto a um acontecimento destes. Talvez esta actividade seja mais perigosa do que um Sniff Game, mas não tenho a certeza.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Uma metafísica ociosa

Por vezes, num momento de alheamento, as coisas parecem iguais ao que eram, mas mal se olha para o lado descobre-se que não é assim. Mascarados, vindos de todos os lados, irrompem no campo visual e por ali ficam a apascentar as horas, arrostando na face o escudo que talvez os salve. Consta que é um problema para os vendedores de bâtons e negócios correlativos. Tudo se paga nesta vida, exclamou ontem o meu amigo Rogélio, com aquele seu ar de profeta folgazão, enquanto acendia uma nova cigarrilha Café Creme. A natureza cansou-se do narcisismo humano e, para nos humilhar, obriga toda a gente a tapar o rosto. Não foi rosto que ele disse, mas as fuças. O que não deixa de ter as suas vantagens, acrescentou, com o ar mais sério que se pode pôr neste mundo. Depois de tecer múltiplas considerações sobre a vantagem estética da ocultação da face, rematou o ditirambo em louvor da máscara dizendo que não a usamos porque existe um vírus ameaçador, mas existe um vírus ameaçador para que a usemos. Eis a verdade. Esta inversão da ordem das causas e dos efeitos foi sempre uma característica sua. Isso foi ontem à tarde, hoje, porém, não posso entregar-me a esta metafísica ociosa, pois muitos são os deveres cuja realização aguarda o beneplácito da minha vontade. Alguém perguntou-me por que razão não escrevo sobre coisas importantes. Respondi-lhe que se eu escrevesse sobre elas, deixariam de imediato de o ser. Fui feito para discorrer sobre bagatelas e nulidades. Deixo aos outros a preservação dos bons costumes e a salvação do mundo. A cada um a sua especialidade.

domingo, 27 de setembro de 2020

Um começo inusitado

Ainda não eram onze da manhã e recebo uma chamada da Emilia Bazán, a mulher de Hans Castorp, o antigo discípulo alemão do padre Lodovico. Que estavam outra vez em Portugal. Se nos poderíamos juntar. Pensei que ela ainda se regulava pelas horas de Madrid. Uma hora ao domingo faz muita diferença. Depois, perguntou-me se já tinha acabado de ler as Sonatas, do Valle-Inclán. Respondi-lhe que sim. Muito bem. E comentários? Disse-lhe que o autor era bastante inteligente e que conseguiu produzir verdadeiras obras-primas quase como se escrevesse novelas cor-de-rosa, embora o rosa fosse ao mesmo tempo jocoso e sombrio. Ela riu-se. Ele era louco e genial. Até perdeu um braço numa briga com um amigo, acrescentou. Muitos idiotas – a expressão é dela – ficam decepcionados com estes romances, pois confundem entretenimento com literatura e, ainda por cima, falta-lhes a inteligência para compreender o autor. Ri-me. Desta vez safei-me, foi o que me acudiu ao espírito. Deste modo inusitado, entrei verdadeiramente no domingo. Ainda não sei bem o que fazer com ele, mas julgo que vou pagar pelas compras que não fiz e por outras coisas que deveria ter feito durante a semana e que adiei, não pela sua dificuldade, não por um ataque de preguiça, apenas porque me fazem bocejar. Uma náusea. Os dias têm estado ventosos e hoje não é diferente. Nos loendros da escola ao lado são já poucas as flores que resistem. As acácias da praceta, porém, estão majestosas, toucadas a verde cerrado que o vento, ao levantar-lhe as folhas, faz parecer quase cinzento e prata. Tenho de me fazer à vida. Quando era adolescente, era hora de ir à missa, agora é tempo de ir fazer compras. Troca-se sempre uma religião por outra. Não passamos de uns pobres conversos.

sábado, 26 de setembro de 2020

Comigo me desavim

Comecei o sábado com uma desavença com a balança. Deu-me mais setecentos gramas do que aquilo que lhe tinha pedido. Disse-lhe que não os queria. Ela replicou que não me preocupasse, eram oferta dela, não tinha de pagar mais. Respondi-lhe que não queria ficar a dever favores a ninguém. Ela que desse os setecentos gramas a outro. Não chegámos a entendimento e acabei por trazer os gramas comigo. Depois, passei diante do friso das orquídeas e descobri que a branca ainda tem duas flores, mas caindo estas entrará em hibernação floral, como todas as outras. Que tenha estado florida mais de ano e meio é um enigma, pelo menos para mim que nunca tive qualquer inclinação para a botânica. Descobri ainda outra coisa. O livro que estava a ler foi mal montado e a partir de certa altura começa a repetir as páginas anteriores. Nem posso reclamar com o vendedor, pois nem sei bem quando e a quem o comprei. Vai para a reciclagem. Também eu me poria na reciclagem se viesse de lá transformado noutra coisa, mesmo que fosse ainda pior do que já sou. Nunca deixo de louvar quem não se cansa de si mesmo, pois recebeu uma graça invejável. A mim foi dado o funesto destino de ter de viver comigo cansado de mim. Bem percebo o Sá de Miranda. Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Talvez ele, como eu, fosse dado ao exagero. Lá em baixo, uma criança exerce os seus poderes fácticos gritando até dobrar a cerviz da mãe, orgulhosa dos pulmões do príncipe. O mundo está a tornar-se-me incompreensível.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Onanismo respiratório

No sítio onde pela mais estrita necessidade oficio, para um rebanho de fiéis sem fé, uma liturgia espúria, como se fora um sacerdote cujos rituais tivessem sido determinados por um colégio cardinalício ignoto e malévolo, ao serviço de um deus galhofeiro e abscôndito, é parte obrigatória do paramento a máscara. É um exercício terrível proferir homilia atrás de homilia, sermão após sermão, com aquela coisa diante da boca e do nariz. Quando tenho oportunidade, escapo-me para o ar livre e procuro um sítio onde não esteja ninguém. Aí retiro o adorno e snifo, não encontro outra expressão, em longas inspirações, ar puro, um ar que não esteja contaminado pela minha própria respiração. Usar a máscara é um exercício de onanismo respiratório. Respiro o meu ar, respiro-me. Eu sei que há coisas bem piores e que elas acontecem sem que para elas seja preciso aduzir explicações. Isso não invalida tudo o que há de tenebroso neste entrudo chocarreiro que nos caiu em cima, neste carnaval que mais parece uma quarta-feira de cinzas ou o dia dos fiéis defuntos. Descarregado o fel, aliviada a bílis, olho para a sexta-feira e peço-lhe que suspenda o seu rápido curso para sábado, que retenha este sol outonal que brilha sobre a copa das árvores e aquece o vento que sopra de norte. Ela olha para mim divertida, volta-me as costas e continua impávida a sua viagem em direcção ao crepúsculo. Omito a palavra que me ficou retida na cercadura dos dentes. Também nesta frase há algum plágio.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Da memória

Hoje, ao passar pela avenida marginal, descobri que os castanheiros estão, muitos deles, sem folhas, e os outros apresentam uma roupagem envelhecida, encarquilhada, prestes a despenhar-se no calcário dos passeios, para que o sopro do vento a enovele e a empurre para dentro do nosso esquecimento. Não há maior sabedoria do que ser capaz de impelir as coisas para o lugar onde a memória perdeu os seus parcos poderes. Há pessoas que têm memórias fabulosas, vivem numa casa atafulhada de folhas mortas. Parecem ter nisso um grande prazer, embora o rancor nunca deixe de borbulhar se a recordação é adversa. Poderia escrever uma diatribe contra a memória e, ao mesmo tempo, uma apologia em seu louvor. Esta possibilidade de fazer uma coisa e o seu contrário deveria ser estimada e desenvolvida com afinco. Nunca se sabe de onde sopra o vento e aquilo que a vida exige de nós. Ainda no Natal nos parecia risível andar mascarados como se o ano fosse todo ele um contínuo Carnaval, agora é o que se vê. Também eu uso máscara, mas ponho-a sobre aquela que usava todos os dias, embora ninguém se apercebesse. Vou equipar-me e pôr-me a caminho para ver se chego a horas ao sítio onde estou.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Misantropia

O dia ensarilhou-se logo de manhã por causa de uma encomenda. Por vezes, uma pequena perturbação na agenda imaginada é o suficiente para me turvar o humor. Talvez seja mentira, e o que me indispõe é ter vindo tarde de Lisboa e uma noite mal dormida. Também é possível que não seja nada disso e me tenha transformado num misantropo. Esta palavra que me deve ter chegado aos ouvidos devido à peça de Molière fez-me lembrar aqueles dias em que perorava sobre a misologia, esse ódio visceral à razão. Como a generalidade das coisas que faço, também essas perorações foram inúteis, como se pode ver por tudo quanto é sítio. Uma sirene rasga o tecido cru do silêncio e anuncia a aproximação das treze horas. Não tenho por hábito ler teatro, mas há muitas décadas, ainda mal barbado, li, em transe, Sófocles e o Sartre teatral. Na província, precisa-se de pouco para ficar extasiado. O que isso terá contribuído para a minha inutilidade está por apurar, mas não terá sido pouco. Pego no jarro e verto vagarosamente a água no copo. Oiço com atenção o som do líquido contra o vidro. Há muito tempo tive uma gata siamesa que, como todas dessa espécie, tinha umas manias muito peculiares. Só bebia água em recipientes de vidro. Sobre mim teve a vantagem de nunca ter lido Sófocles, nem Sartre, nem Ésquilo. Talvez tenha lido Shakespeare. Kant, tenho a certeza que o fez, naquelas horas em que eu tinha a Crítica da Razão Pura aberta defronte de mim e ela se empoleirava no meu ombro para ver o que eu estava a ler. Como nunca me censurou, imagino que terá gostado.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Folhas mortas

Alegro-me. Chegou o Outono com o seu cortejo de folhas mortas. Oiço Yves Montand a dizer Les Feuilles Mortes e depois a cantar o poema de Jacques Prevert. De seguida, passo para a Edit Piaf a cantar em inglês e francês Autumn Leaves e concluo com a Ute Lemper, também a cantar o poema de Prevert. Foram as minhas boas-vindas à mais bela estação do ano. Olho para os cantores escolhidos e, com a excepção de Ute Lemper que é mais nova do que eu, pertencem a gerações bem anteriores à minha. Também eu já entrei no Outono. Estão mortas todas as folhas que caem de mim, mas sinto prazer em ouvi-las bater no chão e serem arrastadas pelo vento. Hoje a minha neta mais velha faz anos. Mal sabe ainda o que é a Primavera, mas os traços da adolescência já são motivo de comentários irónicos a que ela responde com um sorriso ou um olhar enviesado e um franzir de sobrancelhas. Está a entrar naquela fase em que as raparigas se riem por tudo e por nada, o que deixa sempre os rapazes desconcertados. Talvez não exista nada de novo sob o sol, mas estas eternas repetições nunca deixam de ser uma grande novidade, seja a vinda do Outono, seja a entrada na adolescência.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Marinheiras

A segunda-feira resvala entristecida em direcção ao crepúsculo. Os dias estão muito mais pequenos e as noites alongam-se, espreguiçando-se vagarosamente sobre a cama de nuvens, onde um sol pávido também vai adormecendo. Quando começo com frases tão infelizes como as anteriores, sei que estou completamente vazio. Hoje oficiei durante algumas horas. Falei, falei. Muitas vezes as pessoas falam para ocupar os silêncios, pelo facto de os outros não terem nada para dizer ou não quererem fazê-lo. Sei, porém, que nada tenho a dizer. A cada dia que passa, sinto que deveria ter entrado há muito para a Cartuxa. Deixar o silêncio reverberar. Nada dizer e nada escutar, mover-me nesse confronto com o imponderável, nessa sombra que o absoluto projecta sobre os corpos. Diante de mim estão três bolachas marinheiras que deveria ter comido a meio da manhã, para ganhar alguma energia para suportar a outra metade. Envolto na minha álacre e pesarosa verborreia, esqueci-me por completo. Confesso que até há pouco tempo não fazia ideia de que existiam tais bolachas. A minha incultura geral é enorme, mas as minhas netas introduziram-me neste tipo de consumo. Têm uma vantagem. Não são doces. O meu problema não é com o açúcar é mesmo com os sabores adocicados. Um gato cose-se com a parede da escola ao lado. Vai sorrateiro, imerso na sombra da tarde. Depois, pára e coça-se. Por fim, corre e desaparece do meu campo de visão. Vou comer as marinheiras, talvez assim tenha energia para chegar à noite.

domingo, 20 de setembro de 2020

O desconsolo de domingo

Hoje é o primeiro domingo, de há muito para cá, que traz consigo o desconsolo da semana que se avizinha. Nunca soube se essa triste melancolia era parte inteira deste dia de ócio e que se projectava para os dias úteis ou, pelo contrário, ele a recebia vinda do futuro. É possível que muitas das coisas que sentimos no presente sejam apenas reflexos daquilo que existe na casa do futuro e que este envia para o presente como um sinal do que espera os mortais. Sentado numa esplanada na ilha do Baleal fiquei a olhar o mar pejado de surfistas que se entregavam ao difícil equilíbrio sobre a prancha. Estava nesta contemplação distraída quando oiço a voz do padre Lodovico. Se fosse novo, disse, aprenderia a fazer surf, agora é tarde. Quando se sentou à nossa mesa, acrescentou, os Settembrini nunca foram particularmente dados ao desporto. Os seus interesses sempre foram outros, talvez piores. Ainda por aqui, perguntei-lhe. Com a minha idade, respondeu, tenho uma maior liberdade e vim passar o fim-de-semana à casa da Companhia. Seja como for, já disse Missa, embora não tivesse assistência. Eu ri-me. Tem uma vantagem, continuou, não proferi a homilia. Já não tenho paciência para pregar a mim mesmo. Compreendo, respondi. Vamos almoçar à Areia Branca? Conheço lá um bar sobre a praia onde podemos comer e conversar descansadamente. Anuí. Então encontramo-nos lá às duas e meia. Pensei que era um horário pouco católico para um velho jesuíta, mas não disse nada. Ele levantou-se e eu fiquei sem assunto. Temos de nos despachar para o não fazer esperar.

sábado, 19 de setembro de 2020

Equívocos

No seu muito famoso livro Psychologie des Foules, de 1895, Gustave Le Bon cita um estranho caso narrado pelo diário L’Éclair em Abril desse mesmo ano. Tendo aparecido em Paris o cadáver de um rapaz em idade escolar, um outro identificou-o como sendo um seu colega de escola desaparecido há meses. Esta identificação foi corroborada pelos companheiros, pelo professor, pelos vizinhos, pelo tio da criança e pela própria mãe. O problema é que, passadas seis semanas, a polícia estabeleceu a identidade da criança, sem sombra para dúvida, e ela nada tinha a ver com aquela que as sucessivas identificações lhe atribuíram. Tratava-se de um rapaz de Bordéus, aí assassinado e despachado para Paris. A vida é assim feita de equívocos, que se multiplicam sem cessar. Também eu hoje julguei entrever sob uma máscara o rosto de alguém conhecido. Ainda me aproximei, mas valeu-me uma súbita mudança de posição da pessoa, para que vista de outra perspectiva se revelasse não ser quem eu supunha. Fiquei grato ao destino por evitar fazer uma triste figura, mas depois pensei que vivemos uma época interessante. Um terrível equívoco pode ser sempre o início de uma bela amizade. Aviso já que estas últimas palavras são uma citação sem aspas do diálogo final de um certo filme cujo nome omito. São plágio, pois, por falência de imaginação, não encontrei melhor saída do que esta. Agora vou cortar o cabelo. Será que me reconhecerei de seguida?

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Grandes causas

Ontem descobri que a mãe da visceral Natália Correia publicou dois romances, na década de quarenta do século passado, sob o singelo pseudónimo de Ana Maria. Quando percebi a ligação não pude evitar a comparação da visceralidade de uma com a singeleza pseudonímica de outra. Acabo de ser informado que alguém chegou primeiro do que eu a uns livros que há muito pensara em comprar. Terei de fazer novas investigações. O dia está buliçoso. O vento, irritadiço, sopra ao deus-dará, rajada para aqui, lufada para acolá, descarrega a sua ira sobre as copas das árvores que, medrosas, tremem, abanam, entregam-se, em coreografia frívola, a uma dança lamentável. Por vezes, chove. O Outono triunfou sobre o despotismo estival. Tenho ocupado os dias com a preparação de um longo relatório. Estou a tornar-me um especialista em tabelas e gráficos. Nasci com uma propensão para as coisas inúteis e elas não se fazem rogadas, vêm ter comigo para que lhes dê atenção. Muito admiro aquelas pessoas que têm sempre grandes causas e muito se agitam para tornar o mundo melhor, embora o mundo se recuse perpetuamente em fazer-lhe a vontade, quando não, devido à sua agitação, se torna um sítio bem mais infrequentável. Também eu gostaria de ter grandes causas, mas se me dessem uma, por maior que ela fosse, logo eu haveria de a apequenar e torná-la, pela minha mera adesão, em coisa risível. Grandes causas, mesmo ali ao entrar da Modernidade, tinha D. Quixote. A partir daí, e cada vez mais e mais rapidamente, toda a gente passou a ver gigantes onde estavam moinhos. O mais sensato seria evitar estas considerações, pois toda a gente precisa do consolo de uma grande causa. Até eu tenho a grande causa de não ter grandes causas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A palavra que não tenho

Perco-me na procura de uma palavra. A que tenho não me serve. Nisso não me distingo dos outros e quase sinto com eles uma fraternidade nesse nunca servir aquilo que se tem. A uns é o carro que não serve, a outros é a mulher ou o marido, a alguns será o destino, a número incerto de pessoas não lhe servirá a hora de nascimento, talvez pela disposição desfavorável dos astros, a mim são apenas as palavras que me não servem. Há quem tenha palavras dignas de inveja e eu, confesso-o sem contrição, não me faço rogado na cobiça. Talvez existam pessoas capazes de roubar ou matar por uma palavra. Apesar de dado à hipérbole, não vou tão longe. Não por mérito meu, mas porque a natureza não me deu inclinação para o crime. Enquanto escrevo oiço Anouar Brahem, um tunisino tocador de oud, um belíssimo instrumento de cordas parecido com o alaúde. A música combina-se com o tamborilar das persianas e o silvar do vento numa fresta da janela, e eu esqueço-me da palavra que não tenho. O pequeno bosque da escola ao lado resistiu bem à estiagem. Também as acácias da rua estão vigorosas. O Verão curva-se para o Outono e isso é tudo aquilo que agora desejo, mais do que a palavra que não tenho. Recobro o ânimo com o minguar dos dias. Talvez tenha nascido com a lua em quarto-minguante.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Perder o rosto

Quando saí de casa havia um charivari de cuja natureza me tinha esquecido. Junto à escola primária amontoavam-se pais e crianças. Destas saíam sons agudos, verdadeiros estiletes a enterrarem-se pelos tímpanos. Se os pais tinham rosto, foi coisa que não descobri. Estavam de máscara e nunca sabemos o que se esconde por detrás de uma coisa dessas. Quando a uso começo por sentir uma ligeira irritação devido à circulação do ar, mais tarde sou acometido pelo temor de ter perdido o rosto. Alguém me diz que mais vale perder o rosto do que a face. É um caso a considerar, embora os nossos tempos não tenham qualquer interesse por questões de honra. Ainda no século XIX o duelo era recorrente. O último que aconteceu em Portugal foi em 1925 e aquele que o perdeu acabou por morrer de síncope cardíaca, o que não deixa de ser trágico. Ao menos que tivesse sucumbido a uma estocada do adversário. O instituto do duelo servia para as pessoas lavarem a honra, as que a tinham, pois nem toda a gente tinha dinheiro para comprar e usar uma peça de vestuário tão cara. Como não havia máquinas de lavar e a honra não fosse coisa que se desse para a mão de qualquer lavadeira, era preciso lavá-la em sangue. Era um tempo de grandes susceptibilidades. Não se pense, todavia, que era assunto apenas de aristocratas e monárquicos. Os republicanos também tinham uma inclinação especial para as cerimónias no campo de honra. Isto interessa a quem? A ninguém, claro, mas serve para mostrar que escrever é como as cerejas. Começa-se num assunto e acaba-se num outro completamente diferente. Há quem chame a isso volubilidade do narrador, mas pode ficar descansado que não o vou desafiar para um duelo.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O risco

Chegámos a meio de Setembro. Os dias deveriam agora inclinar-se para a melancolia. Um vento fresco, um ou outra folha caída, um sol menos dado à facúndia, a essa eloquência feita de brilho e raios a transbordar calor por todos os poros. Pára, oiço, os raios não têm poros. É pena, podiam ter. Ontem voltei-me para o cardiologista e perguntei-lhe qual o grau de risco caso seja contaminado pelo COVID. Intermédio, respondeu de imediato. E para me tranquilizar acrescentou que pelo coração não haverá problema, está como novo. O risco vem do grupo etário a que pertence. Não corro riscos pelo coração. Ainda bem, pensei. Já começo a não ter idade para os ademanes e volteios do órgão bombeador de sangue. Agora mesmo, ao abrir um livro vi uma afirmação feita há mais de 70 anos em género de previsão. Apesar do tom ser assertivo – uma das palavras odiosas em voga, tal como resiliência e a expressão inteligência emocional – a realidade decidiu contrariá-lo e fazer exactamente o contrário do que fora previsto. Não sei se isto foi um aviso, mas o melhor, ao contrário do que se tornou moda, é não confiar no coração, mesmo que esteja como novo ou por causa disso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Crenças delirantes

A dado passo da Teoria da Loucura de Massas, o escritor austríaco Hermann Broch faz a pergunta: Quem era louco, as bruxas ou aqueles que as queimavam? Talvez, responde, ambos, pelo menos o mais das vezes. Umas e outros viviam mergulhados em crenças delirantes. Apesar de hoje em dia já não ser de bom tom andar por aí a queimar bruxas, um progresso civilizacional digno de nota, as crenças delirantes não acabaram. Parecem ter-se expandido e mal se olha para o mundo ou se dá alguma atenção à imprensa e às redes sociais, fica-se com a impressão de que se vive mergulhado num mundo de delírios. Nesses momentos, desconfio que os meus pensamentos e as minhas crenças são todos eles também delirantes e como tal perigosos. O melhor é abster-me de ter pensamentos e crenças. Espreito pela janela e vejo as torres do castelo, depois passo com os olhos pelo friso das orquídeas, por fim respiro fundo. As torres não têm crenças e as orquídeas não pensam, o que quer dizer que nem tudo estará perdido.

domingo, 13 de setembro de 2020

Um outro calendário

Um almoço tardio de domingo. Depois, como em outros tempos, a refeição prolongou-se entre conversas de ocasião. Não tarda e todos terão de voltar para os sítios por onde conduzem as suas existências. Em tudo isto há uma espécie de recapitulação, mas com personagens diferentes e os que se mantêm ocupam outros lugares na pirâmide etária. Lembro-me muito bem desses domingos em que eu actuava no palco dos mais novos. Cabe-me, agora, o lugar oposto. Só se percebe o que isso significa quando se chega aí, quando os carros começam a sair e de lá de dentro há mãos a acenar, se trocam despedidas e em vez de escutar diz-se boa-viagem e se ouve obrigado, obrigada, adeus avô. Estes são os calendários mais autênticos e os mais terríveis. Neles não se rasgam as folhas dos meses até que estes voltem, numa dança que parece sem fim, como se nada tivesse acontecido. Neste outro apenas se muda de lugar até que o nosso seja suprimido e a outros caiba dizer boa-viagem. Será para isto que um dia se terá inventado a palavra tradição, para que alguém diga boa-viagem e outros acenem de dentro de um carro. Não é a nostalgia que invade a consciência em domingos destes, mas a certeza de que o tempo é um cavalo sem freio e que não há nada mais evidente sobre este mundo do que a nossa finitude, do que a nossa transitoriedade. E estas fazem parte da velha justiça que regula o cosmos que nos foi dado para viver.

sábado, 12 de setembro de 2020

Sábado à tarde

A tarde de sábado vai a meio. Oiço o rumorejar dos carros, oiço vozes entretidas com pequenos dramas domésticos, oiço pássaros presos a disputas eternas. De todos os romances publicados por Carlos de Oliveira, há um que nunca tinha lido, Alcateia. Publicado nos anos quarenta do século passado, nunca mais foi reeditado. Consegui um exemplar num alfarrabista. O talento do autor é excessivo para os universos sociais e psicológicos que escolhe para situar as suas narrativas. Uma insónia esta noite permitiu-me ler um quinto da obra. Lá fora as pessoas enfrentam a canícula, avançam destemidas pela avenida, escondem-se nas sombras. Um jacarandá ainda tem algumas flores, pequenas manchas roxas num oceano de folhas verdes. Há dias que oiço a música de uma freira medieval, Hildegard von Bingen. Gosto de pronunciar o seu nome devagar, como se ele contivesse um mistério e uma promessa de salvação. Teria sido uma mulher extremamente dotada. Além da música ela tinha também um talento enorme para a medicina. Fecho os olhos e dentro de mim funde-se o canto medieval com o uivo da alcateia. O meu neto que hoje conseguiu levar-me à praia já acordou da sesta. Tenho de o ajudar a andar de triciclo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O que se merece

Acabei de receber uma mensagem de que a minha encomenda já está disponível na loja. A encomenda é as traduções das Geórgicas e das Bucólicas, de Vergílio, editadas, o ano passado, pela Cotovia, a moribunda editora. Não tinha dado por elas e foi um acaso que me as fez descobrir. Desconheço o motivo, por certo um conflito teórico ou de tradição universitária, que leva o tradutor destas duas obras a grafar o nome do autor como Vergílio, enquanto o tradutor da Eneida o denomina Virgílio. O mundo tem muitos mistérios. Hoje levantei-me cedo, pois tinha uma tele-reunião às 8:30. Lá videoconferenciei o melhor que fui capaz. É nestas alturas que penso coisas terríveis. Quando cheguei às funções que me ajudam a pagar as contas e a suprir a maldita necessidade, ninguém com a minha idade actual se arrastava por aqueles lugares inóspitos. Já tinha saído pelo menos há quatro anos e dedicava-se a passear ou a fazer o que lhe dava na real gana. O melhor é não me deixar tomar por sentimentos negativos, pensei, pois se para mim é desagradável este degradar-me perante os olhos atentos de terceiros, bem pior é para aqueles que têm de suportar as minhas idiossincrasias, o desacerto que tenho da realidade, as minhas ideias abomináveis sobre o que deveria ser a ordem do mundo. Vou comer qualquer coisa e tomar café, pois não tarda terei de revideoconferenciar. Um dos homúnculos que vive na caverna do meu inconsciente tomou o elevador e parou mesmo à entrada da porta da consciência e atirou-me de chofre: cada um tem o que merece, ninguém te mandou ser idiota e não me teres dado ouvidos. Não dei. De facto, o mundo tem muitos mistérios.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Meus pobres enganos

Levantei-me cedo para ir fazer análises. Isto não demora, pensei. É só atravessar a avenida. Assim fiz. Chegado ao local de colheita dos materiais a analisar, descubro que está fechado. Foi transformado em posto dedicado ao COVID-19. Tenho de ir ao centro da cidade. Omito aquilo que me saiu da boca. O que seria uma história de meia dúzia de minutos transformou-se num processo que demorou mais de uma hora. Os planos da manhã foram todos estilhaçados. Isto fez-me lembrar uma canção de Chico Buarque. Uma certa Rita Levou os meus planos / Meus pobres enganos. Aqui não foi nenhuma Rita, mas a verdade é que todos os meus planos não passam de pobres enganos que uma qualquer conspiração logo trata de desfazer. Para ser honesto, tenho de dizer que vivo num mundo cheio de planos, planeamentos, planificações. Nesse estranho país pensa-se que tudo se subordina a objectivos, os quais ao longo do tempo vão mudando de designação, e que estes devem ser perseguidos através do achatamento da realidade. Nesse país, a maior parte do esforço das pessoas é andar com martelo ou maça a bater na realidade para a tornar plana. É uma pátria muito ruidosa. Pego nos livros que as minhas netas me ofereceram. Omito a referência bibliográfica, pois estou impedido pelo autor destes textos de me meter em política, e eu sou um narrador obediente. Só conto aquilo que ele deixa. Seja como for, sempre posso dizer que um trata de pestes e pragas, e o outro faz o retrato de três personagens importantes neste jardim à beira-mar plantado, todas elas endeusados pelos seus e vistas como pestes e pragas pelos outros. Esperam-me uns planos e outros enganos. Já estou de martelo na mão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Um profeta falhado

Esta é a fase do ano em que começo o dia com a consulta das previsões meteorológicas. Cada um ilude-se como quer. Olho para as do dia, as da semana e as dos próximos catorze dias. Estas são um bálsamo, ao prometerem-me temperaturas sensatas, embora com grau de probabilidade quase nulo. Sempre achei as previsões económicas uma coisa ainda mais extraordinária do que as do tempo. Mais tarde descobri que nem depois dos factos ocorridos se consegue acertar no que se prevê a posteriori. Se eu fosse meteorologista ou economista, faria as previsões na linguagem obscura de um Nostradamo. Escreveria quadras decassilábicas, onde em código faria o prognóstico do raio que cairia ali, da nuvem que passaria acolá, ou, caso se tratasse de Economia, não haveria de falhar uma compra no índice do consumo ou um investimento em esferográficas e papel higiénico de uma empresa, pequena que fosse. Tudo estaria cifrado nos meus escritos e quem quisesse conhecer a realidade, bastaria passar a vida a decifrá-los. Não quis, porém, a natureza dotar-me do talento de profeta. Uma pena, pois não há coisa mais emocionante do que uma terrível profecia, cheia de provações, anjos e trombetas. Que eu saiba, não existe nenhuma que seja anunciada pela música de piano, mas nunca se sabe. A previsão indica-me que estão trinta graus. Respiro fundo, bebo água e volto para as coisas sérias que pautam a minha risível existência.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Fé e falta de fé

Uma longa cadeia de comando. Da mãe para a avó, desta para mim. Tive de ir abrir a janela e obrigar as minhas netas a saltarem da cama. Imagino que sejam exercícios de preparação para o ano lectivo, um corte ritual com o tempo de ócio. Houve tempos mais felizes. Na Grécia antiga o ócio e a aprendizagem andavam de mãos dadas. Hoje em dia são inimigos ferozes, combatem-se sem tréguas. Quando eu tinha a idade delas, Setembro era ainda um mês sem preocupações. A escola não passava de uma nuvem difusa, que chegaria quando o tempo estivesse mais temperado. Havia nisso um saber arcaico que tinha em consideração a inutilidade de tentar ensinar seja o que for nos meses de Verão. Agora faz-se da escola um local para aprender a viver quando a península for um imenso e irrevogável deserto. O ruído de máquinas em manobra ameaça o meu equilíbrio mental. Olho para a lista de coisas que tenho para fazer e bocejo. Não é sono, apenas falta de fé. Os crentes, aqueles que o são verdadeiramente, devem ter menos sono do que as outras pessoas, pois a crença mantém-nos em vigília. Os que são tímidos e mornos no crer – ou que descrêem por completo – sentem mais propensão para dormir. E não há, na lista dos meus afazeres, uma única coisa em que tenha fé, embora também eu tenha algumas crenças. Por exemplo, tenho uma fé profunda no Império Austro-Húngaro. Pena a História não ter tido fé nele, mas a quantidade de grandes escritores que produziu só pode ser motivo de adoração. Tudo isto vem a propósito de Leo Perutz, de quem estou a ler O Cavaleiro Sueco. O autor, um judeu sefardita nascido no Império, foi, além de escritor, matemático, trabalhando sobre o cálculo de probabilidades. Trabalhou na mesma companhia de seguros e ao mesmo tempo que Franz Kafka, de quem terá sido amigo. As minhas netas já estão bem acordadas, pelo que oiço, e entre as suas actividades e as minhas crenças parece não existir qualquer ligação. Felizmente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Chegou a realidade

A realidade chegou pela manhã desta segunda-feira. Como todos sabemos ela é uma senhora muito elusiva, embora haja também quem a ache uma marafona, uma daquelas raparigas viciosas dadas ao desfrute, sempre pronta para pôr alguém em apuros. Quando começo a falar por enigmas é porque a coisa não está bem. As sombras já não são suficientes para suster o ataque desferido pelo Sol. Homens e mulheres arrastam-se pelos passeios, param sob a copa das árvores. Os carros passam devagar, revérberos ambulantes, movidos pelo desejo de alguém chegar ao destino. Os loendros da escola ao lado continuam pujantes e eu deixo-me levar pelo desvario da corrente de consciência, saltitando de assunto em assunto. Vejo o correio electrónico e sinto uma inesperada saudade do tempo em que chegavam cartas em papel, onde um envelope selado ocultava segredos e mistérios. Hoje em dia, pensei, já ninguém tem nada a velar e logo não é necessário esse ritual de desenhar as palavras em folhas de papel, aquelas palavras decisivas que mudam uma vida e que são escritas vezes sem conta, enquanto as folhas são rasgadas, e se pega noutra para recomeçar com mais precisão aquilo que se quer escrever. Muitos romances tomaram uma forma epistolográfica, mas é inverosímil que haja arte na redacção de emails e nada de decisivo pode por eles ser anunciado. A realidade chama por mim. Tenho de lhe dar alguma atenção, pois ela é um moscardo zumbidor que não se cala. Sensato seria comprar um insecticida.

domingo, 6 de setembro de 2020

O exsudar oleoso do tempo

Estou cansado, embora ainda não tenha feito nada. Basta o acinte do calor para me exaurir. Já vamos no sexto dia de Setembro, e este ainda não se mostrou uma única vez piedoso. É um mês violento, irascível, raivoso. Até os pássaros meus vizinhos andam calados. Talvez se tenham mudado para um lugar mais fresco. Fecho os olhos e deixo a música deslizar sobre mim. Oiço um CD, comprado há muito, de Reiko Kimura, Music for Koto. Há na música tradicional japonesa um grande poder para nos subtrair à marcha vexatória do tempo e dos acontecimentos e conduzir-nos a territórios nos quais as palavras não conseguem penetrar. Há que ouvir e esquecer-se de si. Ontem esteve cá o meu neto. Vimos a Masha e o Urso e brincámos com CD. Ele tirava-os do lugar e eu arrumava-os. Tenho já um longo treino nesse papel. Vai na terceira edição e ainda não percebi o fascínio que as crianças têm em desarrumar os CD. Sinto os neurónios a curvarem-se sobre si, como se se enroscassem na posição fetal para dormir. Eu bem lhes exijo sinapses, mas eles olham-me com desprezo. Bocejam e voltam-me as costas. Pudesse eu encontrar-me com Eliot e dir-lhe-ia o quanto estava enganado. Não, não é Abril o mais cruel dos meses. Setembro sim, pois nele nem há lugar para a crueldade de confundir memória e desejo, apenas o exsudar oleoso do tempo, apenas o punhal afilado da realidade cravado na garganta, apenas o uivo esfomeado do lobo perdido na floresta.

sábado, 5 de setembro de 2020

Como ser perfeito

Há um poema, How To Be Perfect, de Ron Padgett, um poeta americano, que se prolonga por nove páginas. Cada verso é um imperativo, embora não haja recurso ao ponto de exclamação. O primeiro diz apenas Dorme. Um imperativo categórico, ordena-nos absolutamente que durmamos. O último é um imperativo hipotético, pois aquilo que ele determina depende de uma condição. Transcrevo: Quando há tiros na rua, não vás para ao pé da janela. Quem quiser ser perfeito tem no poema um roteiro. Há vários imperativos interessantes. Por exemplo: Sê gentil com os objectos. Ou: Pergunta ‘Onde é a casa de banho?’ e não ‘Onde posso urinar?’. De todos os mandamentos – e são dezenas – necessários para chegarmos à perfeição aquele de que mais gosto é do segundo: Não dês conselhos. Há outra coisa que me agrada no poeta. Nasceu em Tulsa, no Oklahoma. Eu não faço ideia o que, enquanto lugar para nascer, seja Tulsa, nem nunca pus os pés no Oklahoma, mas a sonoridade de ambas as palavras fazem-me imaginar de imediato uma terrível intriga, que se desenvolve em torno do imperativo com que se encerra a primeira página do poema: Cuida primeiro das coisas que te são próximas. Arruma o quarto antes de salvares o mundo. Depois salva o mundo. Também eu posso oferecer um imperativo. Caso haja tiros na rua, não te ponhas a salvar o mundo, mesmo que já tenhas arrumado o quarto. A perfeição é um caminho difícil, pensei após ler o poema. O mais sensato é deixar-se afogar em imperfeições. Se for sábado e estiver um calor dos diabos, não te ponhas a escrever idiotices. Este foi o melhor imperativo que produzi para mim mesmo, mas nem a ele consigo dar cumprimento.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O desaparecimento dos rituais

Os olhos secam, tal o calor que está por aqui. Bebo água para me hidratar, mas ninguém consegue usar os neurónios seja no que for com estas temperaturas. Já pensei em recorrer ao ar condicionado, mas aí tudo se complica. A garganta protesta, a voz enrouquece e o espírito começa a duvidar sobre se o corpo não se terá contaminado com o novo vírus que anima a realidade pelo mundo fora. Fui levantar umas encomendas a um posto dos CTT incrustado numa loja que vende livros e materiais escolares. Toda a gente de máscara, o que terá vantagens estéticas e sociais assinaláveis. A continuar assim, chegaremos ao dia em que teremos pudor em mostrar o rosto, mesmo os praticantes de nudismo hão-de fazê-lo de máscara. Uma das minhas leituras actuais é a de um filósofo de língua alemã, de origem sul-coreana, com o inusitado nome de Byung-Chul Han. A obra é Do Desaparecimento dos Rituais. Uma leitura suave e que não há-de agradar nem a gregos nem a troianos, os bandos rivais que enxameiam a praça da filosofia. Nem aqueles que vêem nela um cálculo lógico e transparente como o cristal, nem os que a julgam um exercício esotérico de linguagem indecifrável, que quer sempre dizer outra coisa. Isto, todavia, não interessa a ninguém e a verdade é que os rituais, com o seu jogo de repetições, estão mesmo a retirar-se do mundo. As encomendas que fui levantar eram sapatos que comprei online. O ritual de ir a uma sapataria, com o calça e descalça, o experimenta este e o outro, o abre e fecha caixas, foi substituído pelo relação digital e anónima de espreitar num monitor e de tratar tudo sentado numa secretária. A minha comodidade é um punhal cravado na garganta de um mundo decente. Como se sabe, tenho uma certa propensão para a hipérbole, a que convirá dar o devido desconto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Aparência e realidade

Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil, um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen. Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises que esqueci no consultório.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Efeito Föhn

Hoje é o primeiro dia de oito em que as temperaturas estarão entre os 35 e os 38 graus. Há dias vi uma explicação sobre a razão de aqui estar um tempo quente e seco e do outro lado da serra ser mais fresco e húmido. A causa seria o efeito Föhn resultante da existência de uma cortina montanhosa – serras da Sintra, Lousã, Montejunto, Candeeiros e Aire – que se interpõe nos caminhos dos ventos vindos do mar, gerando o tempo típico do Oeste, de um dos lados, e a aproximação ao deserto deste lado. Como é assunto que me escapa e não tendo vocação para ser especialista em tudo, ou mesmo numa única coisa, acho a teoria esteticamente aprazível e tomo-a por verdadeira, mesmo que o não seja. Depois, sempre me permitiria escrever palavras como barlavento e sotavento, embora o não tenha feito para as poupar para um próximo texto. Setembro começa ao ataque. É um mês cruel, com instintos homicidas. Há nele um rancor que seria dispensável. Olha para nós e ri-se, enquanto arquitecta estratégias para nos submeter às suas humilhações. Reparo que tenho uma gaveta da secretária aberta e lembro-me que deveria procurar a minha caderneta militar. É verdade, apesar de não passar de um narrador sem narrativa, também possuo o documento que comprova que servi a pátria. Foi um mau serviço, a avaliar pela fotografia que lá se encontra. Um tipo ridículo, posso assegurar, sem o garbo de cavaleiro andante ou o aspecto feroz e implacável de um soldado de elite. Se eu fosse a pátria, ter-me-ia posto do lado de fora do quartel a pontapé. A pátria, porém, foi condescendente e disse-me vem, aqui também há lugar para gente grotesca, irrisória, caricata. Não te importas de endireitar a boina ou também tu sofres do efeito Föhn? Deveria evitar o recurso à prosopopeia, mas é o que se arranja. O que eu gostaria mesmo de saber era onde meti o raio da caderneta. Deve estar na outra gaveta.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Um Janus bifronte

Se Setembro fosse apenas a anunciação de um Outono benévolo, se não passasse de um declinar lento do Estio mergulhado na fragilidade da velhice, hoje seria um belo dia. Foi com este pensamento que me levantei e me preparei para enfrentar o inevitável, que como um Janus bifronte, se estende inexplicavelmente para o passado e para o futuro, a tudo contaminando com o ranço da necessidade. Na comunicação social, devotos de várias confissões defrontam-se sobre festividades, rituais e liturgias, como se alguma coisa de decisivo se tratasse. Há nos seres humanos uma tendência inultrapassável para a hipérbole, esquecendo que a morte a tudo acaba por tornar igual. Aquilo que inflama os corações hoje, não merecerá mais do que um encolher de ombros amanhã e, daqui a umas semanas, só será lembrado por exaltados que ainda não descobriram toda a caridade que existe num tranquilizante. Hoje espreitei as torres do castelo, depois olhei para o friso das orquídeas, já quase todas sem flor. Exceptua-se a branca que está em floração contínua há mais de ano e meio. Na avenida, passa um casal. Vão presos na indiferença que os consome, fiéis ao destino com que a vida, escrava do imperativo da multiplicação, os enganou. O sol dispara raios de aço sobre as paredes da escola aqui ao lado, elas abrem gretas e sangram lentamente, cobrindo com o véu do silêncio a dor que as dilacera.