sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Dias difíceis

Há dias em que se têm de tomar decisões que gostaríamos muito de nunca ter de as tomar. O melhor, mesmo se por dentro tudo se dilacera, é enfrentar o inevitável, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Sempre achei que a realidade tem uma face abominável, mas à qual não podemos voltar as costas, pois ela devora-nos. Terá outras alegres e benfazejas, dir-se-á. Não o creio. A alegria e a benevolência, aquilo que traz contentamento e prazer, tudo isso não faz arte da realidade. São pequenos sonhos e fantasias com que edulcoramos a vida, para a tornar suportável. Sempre abominei aqueles programas sobre a vida selvagem. Os animais são seres magníficos, mas tudo na sua vida gira em torno de matar e morrer, com interlúdio para o sexo, para que o triste espectáculo da sua existência possa continuar, num mundo onde só há devoradores e devorados. Essa é a realidade, mesmo entre nós, seres humanos. Talvez a diferença específica que nos separa, um pouco, muito pouco, desse mundo sangrento, não seja o facto de termos sido dotados com a razão, mas de haver em nós uma faculdade produtora de fantasia. Uma frágil faculdade, diga-se, mas que mesmo assim nos faz pensar que a vida vale a pena, que é possível fugir dessa orgia de morte com que a vida se alimenta. Talvez não seja por acaso que a tradição cristã elegeu a sexta-feira para a morte de Cristo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ser zaragatoado

Uma calamidade termos voltado ao estado de calamidade. Por causa disso, tive de ir hoje oferecer as minhas pobres narinas ao exercício do escarafuncho. Como terei de ir amanhã fazer uma visita a um hospital, além do certificado de vacinação, tenho de levar a prova de que fui zaragatoado e que o resultado foi negativo, como comprovei há pouco ao recebê-lo no email. Pior, muito pior, do que ser vítima da arte de escarafunchar narinas é a odisseia – só esta palavra indica o carácter aventuroso do que vou dizer a seguir – a odisseia, repito, de marcar a escarafunchadela. Liga-se para aqui, para ali, para acolá, laboratório público, laboratório privado, e não há uma alma que nos atenda. Minto. Há técnicas ainda mais soezes de conduzir, ao desespero, o candidato à zaragatoa. Atendem do geral, amabilidades mil, diz-se ao que se vai, respondem que vão fazer ligação ao laboratório, é lá que se trata de tudo. Agradecemos humílimos, fazem a ligação e somos recebidos por uma música inenarrável, entrecortada pela informação de que nos encontramos em fila de espera. A fila deve ser tão grande, que a própria operadora de telemóvel se cansa de nos ver esperar e acaba com a chamada. Talvez também não gostasse da música. Assim como num dia nublado há momentos em que surge uma aberta para o sol brilhar, também neste céu nebuloso das testagens COVID se fez uma aberta, eu marquei o teste, foi testado à hora exacta e recebi mais cedo do que esperava o resultado. Nem tudo é mau. Não tem sido um dia fácil, mesmo para um herói sempre disposto a odisseias.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Falta de coragem

Hoje foi um dia em que não fiz rigorosamente nada. Pelo menos até agora. É certo que levei uma pessoa à estação rodoviária para ela apanhar o Expresso. De seguida, fui à bomba de gasolina encher o depósito do carro e, por fim, passei pela farmácia para comprar aspirinas de 100 mg, coisa que consumo ao ritmo de uma por dia, e que me irrita solenemente, pois custa tanto como as aspirinas normais que possuem cinco vezes mais de substância activa, o célebre ácido acetilsalicílico. Tudo isto não dá para uma aventura digna de narração e de rememoração. Fosse a ida a um supermercado ou à frutaria da esquina, as coisas seriam diferentes, pois são lugares onde há gigantes a enfrentar e dragões a abater. São locais que dão sentido à vida humana. Não tendo ido lá, nem sequer ao Shopping, pois aqui também há um entreposto comercial com esse nome, vi seriamente abalado o sentido último da minha existência. Ainda iria a tempo, caso tivesse coragem e me dispusesse a enfrentar o ar frio, mas estou em registo de feriado. Fico-me por casa, na companhia de Pelleas und Melisande, de Arnold Schönberg, compositor que me tem acompanhado todo o santo dia, pois este é um dia santo, como me recordou há pouco o padre Lodo, como é conhecido entre os amigos o velho jesuíta Lodovico Settembrini, que trocou, há décadas, a terra natal por este recanto da península, onde, além de Deus, cultua os vinhos e a comida. Com moderação, como nunca se esquece de sublinhar. É verdade, hoje estive quase uma hora em conversa de telemóvel, mas isso não é uma aventura, apenas um prazer. Tivesse eu a coragem de um Cid campeador ou de um Orlando Furioso, ainda iria comprar umas coisas ao supermercado. Falece-me, porém, a coragem e tenho de pensar nos presentes de Natal.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Uma dura aventura

Uma dura luta contra as forças arbitrárias que comandam o universo. Em 2011, comprei a Encyclopaedia Britannica. Não em papel, claro, mas num DVD. Ela lá foi prestando os seus serviços, em concorrência com a Universalis, em língua francesa. Tendo feito uma troca do disco interno do computador, preparei-me para a instalar. Coisa simples. O pior é que as forças do mal não estavam pelos ajustes. Dava o comanda para instalação, e nada. Que me instalasse eu, cheguei a ouvir murmurado. Pensei, depois de várias tentativas, que o problema poderia ser da unidade de DVD do computador. Ligo uma unidade de DVD portátil. Resultado? Nada. Entretanto, tive de me fazer à vida. Entre outras coisas, fui ao dentista. No retorno, para descargo de consciência, fui tentar mais uma vez. A princípio, o dispositivo continuou renitente, mas depois, talvez por eu ter ido ao dentista, apiedou-se e decidiu começar a instalação. A certa altura pediu o serial number. Com delicadeza, dizendo-me que ele se encontra na caixa do DVD, no lugar referido no documento que acompanhava a mercadoria. Esse documento, se o guardei, não faço a mínima ideia onde estará. Pus-me a pesquisar na caixa e lá o encontrei muito disfarçado. Olhei para ele, ajustei os óculos, fiz incidir a luz de um candeeiro, mas isso só serviu para constatar que há dez anos via muito melhor. Pensei numa lupa, mas estava noutro lugar da casa. Ocorreu, então, fazer uma fotografia com o telemóvel. Remédio Santo. O serial number lá se mostrou em algarismos e letras bem visíveis. E é isto o que me ocorre narrar. As outras coisas não interessariam a qualquer leitor e aquelas que, porventura, o interessassem, não me interessam a mim. Fica aqui, para os pósteros poderem recordar, uma aventura onde, depois de muita porfia, as forças do arbítrio e do mal são vencidas, aventura que supera tanto as do Cid, o Campeador, como as do Quixote.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Meditação dominical

Há livros de poesia cujos títulos são, por si só, autênticos poemas. Um dos poetas com mais talento para escolher títulos foi Eugénio de Andrade. Por exemplo, As mãos e os frutos¸ ou Obscuro domínio, ou Véspera de água, ou Limiar dos pássaros, ou O peso da sombra, ou Branco no branco, ou Rente ao dizer, ou O sal da língua, ou Lugares do lume. Cada um dos títulos basta para produzir um profundo efeito poético no leitor. Mais do que isso, cada um destes títulos tem o poder de arrastar o leitor para uma meditação que ultrapassa em muito o prazer poético que eles produzem. Essa meditação pode conduzir à descoberta de conexões inesperadas entre realidades que o hábito ritualizado mostra como completamente separadas. Há, por exemplo, uma clara incongruência na expressão véspera de água ou em o peso da sombra. No entanto, podemos ser conduzidos a pensar sobre o que antecede a água, o que será aquilo que vem antes dela, ou então a meditar por que razão aquilo que a véspera antecede é denominado água. Hoje é véspera de amanhã. Não será, neste momento, o amanhã ainda uma coisa líquida, sem os contornos da solidez? Também a sombra não tem peso, mas não haverá algo de pesado em tudo o que é sombrio? Estas incongruências são o produto da imaginação que oferece ao leitor uma chave para abrir aqueles obscuros domínios, onde a realidade se esconde. A mim, todavia, não me ocorre nada de poético, apenas que é domingo e o almoço será, como é habitual, tardio. Também os dias têm a sua gramática, morfologias e sintaxes muito próprias, que os classificam e organizam, que estruturam os seus rituais. Talvez a poesia, com as suas incongruências, seja uma luta contra o ritual dado na gramática de cada coisa.

sábado, 4 de dezembro de 2021

Citação

Comece-se com uma citação. A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. Que bela citação. Talvez o leitor pense de imediato estar perante um texto do século XVIII. Não se terá enganado. De facto, o livro de onde foi retirado o excerto é da parte final desse século de luzes, revoluções e libertinagens. Tem, aliás, o odor desses tempos. Depois, ao meditar no conteúdo, verá nascer-lhe a convicção de que se estará perante o começo de um romance ou de uma novela libertina, daquelas em que a inocência facilmente é vencida por sedutores mais ou menos experimentados. Talvez obra do senhor Donatien Alphonse François de Sade, também conhecido por divino Marquês. Ah! Como as ilusões depressa cobrem com o seu manto de fantasia a realidade. Já se pressentia uma jovem inocente afogueada, presa da líbido exuberante de algum dominador cruel, já se via o rubor da alma ainda imaculada a ceder à curiosidade que o desejo logo acende. A imaginação não tem fronteiras. A verdade, porém, é que a citação pertence a um autor pouco dado a aventuras libidinosas, de uma moral rigorosa e, não será uma hipérbole dizê-lo, assexuada, alguém que atravessou a vida sem se casar ou, que se saiba, ter tido uma aventura erótica. Que se saiba, sublinho. Estas coisas nem sempre são o que parecem. Não, não é um libertino o autor de tão promissora abertura de uma novela libertina. Trata-se daquele senhor que todos os dias dava um passeio à mesma hora pela cidade de Konigsberg e cujo nome é Immanuel Kant. A páginas tantas da sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, saiu-se com esta, mas o desenrolar da narrativa não conduz a aventuras dionisíacas, não há jovens inocentes e belas seduzidas pelos mestres da perversão, mas traço o duro caminho do rigor moral apolíneo. O sábado sombrio não me está a fazer nada bem.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Uma traição

Mandei trocar o disco interno do computador, o que me limpou o dispositivo do imenso lixo que o tornava mais lento que Aquiles atrás da tartaruga, mas trouxe-me um grande desgosto. O Word apareceu-me formatado para o malfadado Acordo Ortográfico de 1990. Esta mania das reformas e simplificações ortográficas, de adaptar as coisas aos tempos, como se os tempos não se pudessem adaptar às coisas, causa-me desprezo. As línguas vão-se transformando, tal como as sociedades, os países e as sociedades. Hoje em dia ninguém se lembra de ir dinamitar umas ruínas romanas ou um castelo medieval só porque, na verdade, são inúteis. Foi o que fizeram com o português. Ele tinha, em algumas das suas palavras, os vestígios mudos, mas visíveis, da sua origem, verdadeiros monumentos linguísticos, e aqueles senhores, os que perpetraram a ignomínia do acordo e os que o aprovaram, acharam que era boa ideia pôr umas bombas nesses vestígios monumentais. Não foram os primeiros, pois um corpo de linguistas do tempo da Primeira República fez o mesmo, eliminando os vestígios visíveis do grego, mas isso compreende-se. Nesses tempos, os bombistas estavam na moda. Este jacobinismo linguístico irrita-me. Até aqui o meu processador de texto era fiel ao português anterior ao segundo bombardeamento. Agora, se escrevo cacto ou conjectura, sublinha-me as palavras a vermelho. Se tenho a veleidade de escrever o mês com maiúsculas, lá está o Word a sublinhar a palavra a azul, indicando-me uma incorrecção gramatical. E este processador não é o pior, pois há os que o único português que conhecem é o do Brasil e não hesitam em sublinhar facto a vermelho, pois no Brasil, factos são fatos e fatos são ternos, apesar dos cactos e das conjecturas continuarem a ser aquilo que eram. Se se fossem internar, ficaria muito grato. Uma traição.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Um dia de luz

Um dia luminoso e frio, belíssimo, mas talvez a anunciar um ano sem chuva. Na praceta, adolescentes jogam à bola, gritam golo, emitem uns urros próprios ao estado em que se encontram. Sem que o entusiasmo esmoreça, de súbito, calam-se. Terão entrado para o Centro de Línguas. Ali não haverá lugar para urros, nem para golos, mas a preparação do futuro, convencidos todos que o futuro ainda será escrito e falado em língua inglesa. Estas presunções são difíceis de provar, mas é muito mais difícil mostrar a sua falsidade. Quando tinha a idade deles, era inverosímil pensar que o Francês se tornaria, em Portugal e um pouco por todo o mundo, uma língua dispensável. Pertenço a uma geração cuja cultura de base é francesa. A literatura, a música, o modo de vida e até a política, embora sobre isso o autor não me deixe falar. Agora, ninguém quer saber do Francês. A língua inglesa, como certas variantes dos vírus, tornou-se dominante, há já faculdades a ministrar os cursos em inglês, e, caso o gosto de alguns se tornasse dominante, em pouco tempo Portugal tornar-se-ia um país anglófono, a que não faltaria o pedido de adesão à Commonwealth. O que teria as suas vantagens, pelo menos no Algarve. Agora, enquanto o dia resiste aos avanços da noite, vou ver a luz resplandecer na cidade.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Presépios

Chegou a última carruagem do comboio de 2021. Este corre desenfreado em direcção a 2022, como se estivesse tomado pela urgência de um encontro decisivo. Não tarda, a Restauração fará quatro séculos. Apesar de gostar imenso de Espanha, gosto ainda mais de não ser espanhol. Não que a condição de ser espanhol seja algo que provoque vergonha. Pelo contrário, os espanhóis têm imenso prazer em sê-lo. É esse prazer que eu sinto em ser português. Lamento as nossas idiossincrasias mais obscuras, lamento a falta dos climas do Norte, sou dos poucos a fazê-lo, mas a forma como os portugueses olham para o mundo, com bonomia e moderado cepticismo, coisa de gente que já viu muito, são-me agradáveis. Esse prazer de ser português justifica plenamente que se comemore o cartão vermelho aplicado a Filipe III. Importante, porém, foi ter cá o meu neto. Ainda não sabe nada de restaurações, mas mal passou a porta e viu a árvore de Natal e os presépios – coisas que por cá são montadas no início do Advento – ficou fascinado. Queria ver as luzes na mão dele e mexer nas figuras. Sou muito sensível a estas reacções, pois nunca esqueci um presépio montado pelo meu pai, há muitas décadas. Pelas minhas contas tinha eu a idade do meu neto. Julgo que estou ligado ao Natal por esse presépio arcaico, feito por alguém que não era crente e que nunca vacilou na sua descrença. Ou talvez eu esteja enganado, e aquele presépio feito para mim fosse a confissão de uma crença bem funda. Se tiver tempo, ainda hei-de contar ao meu neto o presépio que o bisavô dele montou, com pedras e musgos, rios de prata e caminhos de areia, céus azuis com estrelas e lua. Amanhã, a Restauração estará acabada e a realidade voltará com os seus imperativos e mandamentos, mas o Advento prossegue com os seus presépios debruçados sobre a infância.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

O Restaurador

Adeus, Novembro. Está tudo terminado, daqui a algumas horas será feriado e Dezembro virá como o Olex, o restaurador. Claro que pouca gente saberá o que é o Olex. Não é, apesar das aparências, nenhum rei de uma tribo pré-romana, que tenha restaurado a dinastia, nem haverá semelhanças com um Bragança que aceitou que os espanhóis fossem postos fora do trono para ele o ocupar. Se tem problemas com a cor do cabelo, então o Olex restituir-lhe-á a cor primitiva, uma verdadeira poção, apenas ultrapassada por aquela em que Obélix caiu em pequeno e a que toma o seu companheiro de orgia – não sexual, note-se – Astérix. O Restaurador Olex pertence à mesma empresa que produz a célebre pasta medicinal Couto. Ambos os produtos possuíam in illo tempore anúncios que, pelo seu inusitado ridículo, funcionavam muito, muito bem. Amanhã, quase hoje, livrar-nos-emos da espanholada, defenestraremos o Miguel de Vasconcelos e, como gauleses do Astérix, haveremos de resistir a todos os cantos de sereia dos castelhanos. Este é um dos episódios da nossa história que, na narrativa dos meus professores primários, me fizeram pensar que todos os nossos gloriosos antepassados eram heróis e santos, que haveriam de estar na glória do Senhor, cantando hossanas e aleluias. A inocência é uma grande coisa.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Questões de beleza

Revejo algumas reproduções de quadros de Jackson Pollock. Nunca me canso. Não é a técnica, drip painting, que me interessa, mas o resultado. Imagino sempre que se está perante uma visão daquilo que se esconde por detrás das aparências. Nestas a figura e o contorno são forças que impedem a visão de se confrontar com o caos originário. O que alguns quadros de Pollock fazem é mostrar que também no caos, naquilo que parece ser o resultado de gestos fortuitos, se encontra a beleza. Isto pode parecer paradoxal, pois a beleza é, por norma, associada à organização, à forma, à feliz disposição das aparências, as quais surgem ordenadas segundo uma justa medida. Uma das leituras da arte do século XX é que esta despediu a beleza. Talvez essa apreciação esteja radicalmente equivocada. Talvez a beleza se tenha estendido para domínios que antes seriam considerados não belos. Não sei se esta meditação pseudo-estética foi motivada pelas reproduções de Pollock ou por ser segunda-feira, aquele dia em que a realidade bate à porta, entra e senta-se até que chega a sexta-feira e ela vai de fim-de-semana. Demasiado contacto com a realidade não faz bem a ninguém, como se pode ver.

domingo, 28 de novembro de 2021

Um domingo ganho e um choque

Estava a atravessar a cidade quando ouvi: e se passássemos pelo local onde estão a vacinar, pode ser que ser que tenhamos sorte. Talvez esteja fechado, hoje é domingo, respondi. Mas dirigi o carro para lá. Era meio-dia e meia hora quando chegámos ao sítio. Às treze horas estava na rua à procura de um restaurante com o reforço da vacina contra a COVID feito e a toma da vacina da gripe, uma estreia. Isto significa que as coisas por aqui estão a funcionar como deve ser. A coisa está, por agora, resolvida, tanto quanto se pode resolver. Foi um domingo ganho. Curioso é que as pessoas que estavam a vacinar-se, a maioria, era gente nova, o que quer dizer que não o tinham feito no devido tempo e que alguma coisa lhes assaltou agora a consciência. Também se demandou por testes COVID, mas estão esgotados por toda a parte. As pessoas estão a abastecer-se para as festas de Natal e de Ano Novo. Como é que a indústria não antecipou a reacção do mercado? As acácias da praceta, que ainda há dias apresentavam uma belíssima e composta folhagem amarela, estão agora quase despidas. O vento balança-lhes as folhas mortas e estas caem, enovelando-se no chão. Numa passagem pelo supermercado tive uma das piores experiências que se pode ter. Estávamos a pagar numa caixa e alguém se mete connosco, com à vontade e familiaridade. Olho perplexo para a pessoa, torno a olhar e, só passados largos, demasiado largos, segundos, descubro que, por detrás da máscara, estava o rosto do meu filho. Acho que ainda não me recompus do choque de não o reconhecer de imediato.

sábado, 27 de novembro de 2021

Um birra

Uma birra monumental. Fui buscá-lo, ao meu neto, à entrado do prédio. Vinha ensonado e cabisbaixo. A coisa começou a meio da viagem de elevador. Abriu a boca e desatou a chorar. Não queria entrar em casa. Entrado, queria sair. Um grande problema afligia-o. Queria pôr a chucha no carro da avó que o deixara para ir tratar de assuntos urgentes. Tive de fechar a porta à chave, pois insistia em sair. Percorreu as várias tonalidades da tragédia grega. Chegou a atirar-se ao chão, mas achou que não valia a pena. Peguei-o ao colo, esperneou, fez-se de enguia para tentar fugir. Mostrei-lhe um presente que tinha para ele, nem olhou. Valeu-me a avó de cá. Com tantas peripécias, a energia foi-se gastando e o sono, que o atormentava desde o início, venceu. Agora dorme como um anjo, se é que os anjos dormem. Foi um começo de tarde exuberante. O sol já começa a declinar, toma a palidez por tom de pele, anuncia o crepúsculo e a noite que há-de vir, quando a porta ranger nos gonzos para ela, como se fosse uma rainha, entrar. Isto lembrou-me a ária da Rainha da Noite, na Flauta Mágica, do Mozart. Como eu gostaria que o meu neto, um dia, a visse comigo. Tenho ainda muitas coisas para tratar. Nem todos os sábados são dias de fim-de-semana. O pior, porém, é que não vou ter grande tempo para brincar com o rapaz, agora que a birra lhe passou. Acordado, será hora de lanchar e de o ir pôr a casa da outra avó. A vida é o que é e não o que se deseja, ou será o contrário?

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Desconexão neural

Há dias que oiço continuamente a mesma música. Não sei de quê será isto sinal, mas imagino que não deve ser lá muito abonatório do meu estado mental, se é que eu tenho uma mente para possuir estados. Não a oiço como se a estivesse dedicado a ouvi-la, mas como se ela fosse o pano de fundo da minha existência, como a música das esferas celestes o é da vida neste pobre planeta e noutros, caso exista vida noutros lugares. Não parece muito verosímil que este acontecimento, o do surgimento da vida, seja uma excepção num universo cuja dimensão o espírito dos homens é incapaz de abarcar, mas é uma possibilidade a considerar. Até agora, nenhuma prova em contrário, embora isso não prove a inexistência da vida por outros lugares. Já não me recordo quem o terá dito, talvez Pitágoras, mas as esferas celestes, nas suas rotações em torno da Terra, emitem uma música – celestial, por certo – mas nós não a ouvimos porque o hábito toldou-nos a audição e ficámos surdos para as harmonias celestes. Talvez os recém-nascidos a oiçam, mas habituam-se a ela ainda antes de falarem e perdem a memória desses memoráveis concertos. Quando chego à sexta-feira, vendo-a passar num foguete (ainda haverá quem se lembre do comboio-foguete, no qual muitas viagens fiz para o Porto?), o aparelho neuronal descamba e começa a soletrar-me coisas desconexas, pegando uns assuntos noutros. É isso que escrevo com fidelidade, a minha desconexão neural das sextas-feiras à tarde quase noite.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Resiliência

Voltamos para o estado de calamidade. Parece que o vírus tem uma grande resiliência, como se tornou moda dizer. A sua manifestação é atacada, mas ele logo se recompõe do choque e não perde o equilíbrio emocional. O que lhe permite voltar a infectar. Resiliência é uma palavra que me irrita sobremaneira, tal como empreendedorismo. Não querem dizer rigorosamente nada, não passando de chavões na comunicação social.  Como, num outro contexto, alguém dizia – alguém que já não recordo – são significantes sem significado. Um significante sem significado, na linguagem falada, não passa de um flato. Abre-se a televisão e descobre-se, abismado, que muita gente importante sofre de um estado crónico de flatulência, tantos são os significantes sem significado que debita. Se fosse dono de uma farmacêutica tentaria criar um Aero-Om linguístico, passe a publicidade. A toma deveria ser compulsiva. Pessoa que falasse, na comunicação social, em resiliência, empreendedorismo e coisas semelhantes teria de tomar quatro comprimidos por dia, após as refeições. O ambiente tornar-se-ia menos pestífero, a língua agradecia e, mesmo que isso não fosse condição suficiente para chegarmos ao paraíso, contribuiria decisivamente para dele nos aproximarmos. Não fosse o caso de estar proibido de falar de política pelo autor, este narrador teria imensas soluções que melhorariam a vida das pessoas. É o que faz os narradores estarem subordinados ao seu criador, os quais são despóticos e falhos da misericórdia divina. Deus criou o mundo e deu ao homem liberdade para fazer o que entendesse. Os autores criam os narradores, mas em vez de lhes dar rédea solta, enchem-nos de proibições. Não falas disto, nem daquilo, nem daqueloutro. Seja como for, oiço agora a minha neta mais nova numa sessão online com a avó. O assunto parece ser a Geometria. Espero que pequena seja resiliente. O que vale é que comprei Aero-Om.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O que me ocorreu

Quem hoje em dia sabe quem foi Domingos Monteiro? Poucos, muito poucos. No entanto, foi um editor com peso no mundo literário com uma editora também pouco conhecida nos dias de hoje e já desaparecida há muito, a Sociedade de Expansão Cultural, a qual deu voz a muito autores nacionais, que ali encontravam abrigo. O próprio Domingos Monteiro foi escritor e com nome firmado na praça. Conhecido, principalmente, como contista, também escreveu poesia, história, doutrina e crítica, múltiplas novelas e o romance O Caminho para Lá. É este que comprei em segunda mão, a edição definitiva, a segunda, de 1958. A primeira data de 1947. Espanta-me sempre os milhares de exemplares que eram tirados. Esta segunda edição corresponde aos 5º e 6º milhares, o que significa que a primeira teve uma tiragem de 4000 exemplares. Números que hoje seriam astronómicos. Apesar de ser um óptimo escritor, Domingos Monteiro não era um dos grandes nomes da época e mesmo assim os seus livros vendiam-se muito. E não é caso único. Contudo, à medida que os portugueses se vão escolarizando, à medida que o ensino superior se vai democratizando, os leitores de literatura com um módico de seriedade parecem diminuir. Em torno da poesia gira uma pequena seita esotérica, sem qualquer ligação ao grande público. Diz-se que os poetas escrevem uns para os outros. Talvez seja assim. Temo, porém, que ao romance aconteça a mesma coisa. Curioso que o cinema, essa forma de narrativa romanesca com imagens, não matou o romance, mas talvez as séries do Netflix e semelhantes o estejam a fazer. Isto foi o que me ocorreu num dia em que pouca coisa me ocorreu.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Provações iniciáticas

Quase duas semanas de poupança. O hábito é ligar, por aqui, o aquecimento no S. Martinho. Este ano não foi preciso. O frio, porém, chegou agora e já começou a infiltrar-se nas casas, armado com uma espada de gelo com que persegue as manchas de calor ainda restantes. Como alguém dizia, vivo numa zona climatizada, quente no Verão e fresca no Inverno. Não se trata, porém, de frescura, mas de frio. Ainda, por cima, sem o consolo da neve, a qual é guardada, só para eles, pelos ciosos habitantes das zonas altas. Espera-me uma noite difícil e uma manhã igual, pois hei-de submeter-me a um estranho exercício de abluções interiores, as quais me tornarão puro e cristalino, para que amanhã possa ser visto e revisto. Na verdade, é um autêntico ritual iniciático, que nem sequer exclui o jejum, embora o destino próximo não seja a elevação espiritual, mas o caminho atarefado para a casa de banho. Alguém contumaz na prova iniciática recomenda que se tenha as leituras e gadgets a postos, pois fazem parte da provação. Servem para evitar o contacto com as forças negras. Já verifiquei se os eReaders estão carregados. São mais maleáveis que uma pilha de livros e, contêm, bibliotecas. Literatura e outras leituras mais inóspitas não me faltam. Há que enfrentar com denodo a fragilidade humana. De resto, continuo a ouvir canto gregoriano, mas acho que chegou a hora de mudar. Um concerto, em Seatle, de polifonia portuguesa, com música de Filipe Magalhães, Manuel Cardoso e Duarte Lobo, todos da chamada escola de Évora e do período de ouro da polifonia portuguesa. Talvez a música, a excepcional música portuguesa, estenda sobre mim as suas asas protectoras.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Fora da realidade

Num certo diálogo, em Kiev, entre o jornalista Jagorski e o ajudante S. I. Antonov, o primeiro diz: Mas antes contou as coisas de um modo diferente. Então, o ajudante responde: É que as coisas eram complexas, e por isso eles não nos impediram a concretização da acção essencial. Ao ler o trecho do diálogo fiquei perplexo com a resposta de Antonov. Se tivesse presença de espírito e um módico de sabedoria teria respondido de outra maneira. Diria: Há pouco contei as coisas de modo diferente porque elas eram diferentes. Ao contá-las segunda vez elas já se tinham transformado com a primeira narração. Se as tornar a contar, não terei outra possibilidade, para lhes ser fiel, senão dar uma nova versão dos factos. Isto, sim, seria uma resposta à altura. É certo que todos nós possuímos a crença ingénua de que factos são factos e que mal tenham acontecido eles permanecem eternamente idênticos. A crença, porém, não tem em conta os estranhos efeitos que a narrativa tem sobre os factos. Ela interfere com eles e faz com que, mesmo já tendo acontecido, eles se transformem. Se queremos que certos acontecimentos passados permaneçam o que foram, a única forma de o conseguir é não falar neles. Talvez esta minha deambulação por terrenos ínvios esteja ligada à escuridão da noite. As trevas intrometem-se no corpo de uma pessoa e a capacidade sináptica do cérebro é duramente abalada. Ou então foi o título do Volume II da Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, de onde retirei o excerto do diálogo, que me afectou. Não é sem enormes perigos que se estabelece relação com um livro que tem por título A Queda para Fora da Realidade. Também eu terei caído para fora da realidade. Há muito, ouço dizer.

domingo, 21 de novembro de 2021

Mais valia

Como um biscoito seco tirado de uma caixa comprada numa grande superfície. Não é mau. Também não é particularmente bom. Come-se. O pior é que mesmo ao lado da caixa está um bolo de maçã e nozes, feito em casa, com um aspecto e um odor absolutamente tentadores. Mais do que isso, pois ontem perdi-me, com um sabor esplêndido. Hoje, porém, e nos próximos três dias está-me interdito. Não apenas o bolo, como tudo o que vale a pena comer. É-me permitido, por exemplo, sopa branca de batata. O que será sopa branca de batata? Terá cal? Olho para a dieta prescrita e não vejo a proibição nem de álcool nem de café. É nestes momentos que me sinto perdido na existência. Não estão prescritos, mas não estão interditos. Por exemplo, o leite está interdito. O que para mim não tem qualquer problema, pois não o suporto. Seja como for, a coisa está clara. Será que posso beber um copo de tinto? Talvez eu não tenha percebido. Aquilo que posso comer não requer acompanhamento de bebidas sérias e profundas. Logo, quem fez o maldito panfleto não achou necessidade de interditar o vinho. Pensou que era uma evidência. É nestas meditações que perco o domingo, em vez de pensar em coisas sérias, como brincar com o meu neto, fazer corridas de carros, pô-los no camião transportador, todas essas coisas que dão sentido a uma vida e não requerem dietas durante três ou quatro dias. Mais valia que me fosse decretado um período de jejum e abstinência. Mais valia.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Efeitos musicais

Nesta altura do ano, os dias começam a despedir-se muito cedo. A um sol glorioso, que parece ir brilhar por toda a eternidade, segue-se, de súbito, uma luz mortiça e envergonhada, impotente para fazer reverberar as paredes dos prédios, para iluminar de ouro e prata a copa das árvores que ainda não perderam as folhas. Logo vem o crepúsculo e a escuridão nocturna. As acácias da praceta ainda estão magníficas, com as suas folhas amarelas, ainda tisnada por leves sombras esverdeadas. Daqui a pouco serão apenas manchas pardas. Das colunas da aparelhagem sai uma música que se poderia escutar sem nunca dela ficar cansado. Trata-se de canto gregoriano. A opinião da escuta eterna sem cansaço não é minha, mas de alguém que no Youtube comenta um vídeo com sete horas deste tipo de música. Tanto o canto gregoriano como o bizantino têm o estranho poder de envolver a consciência sem a ela se impor. Talvez a polifonia renascentista ainda herde algum deste poder. A música do barroco, porém, já se afastou desta possibilidade. Apesar de ser uma música extraordinária, não tem o poder conciliador que o ouvinte encontra no canto gregoriano e na polifonia da Renascença. A partir daí, com o classicismo, o romantismo e a música contemporânea, o afastamento dessa origem pacificadora foi crescendo, embora no século XX se tenha assistido a algumas tentativas restauracionistas dessa experiência agora arcaica. Como se vê, a minha falta de assunto é total. Se tivesse alguma coisa para dizer, mínima que fosse, não teria escrito sobre aquilo de que nada sei, a música. Uma pessoa, porém, se escrevesse apenas sobre aquilo que sabe, talvez ainda não existisse hoje coisa alguma escrita. Com isto, cheguei ao crepúsculo. A tonalidade do ambiente está carregada de mistério, o mistério da queda da noite.