quarta-feira, 11 de maio de 2022

Perversões

Acabei mais uma incursão no admirável mundo novo das videoconferências. Nesta afirmação não existe qualquer censura ao facto de se substituírem encontros presenciais por virtuais. Aliás, permitiria, caso tivesse talento para isso, fazer profundas meditações sobre a virtualização do corpo, a sua redução a uma pequena imagem, quando não a sua ocultação. Influenciado pelos teóricos franceses dos anos sessenta e setenta do século passado, que, em Portugal, estiverem em moda nos anos oitenta e noventa, haveria de discorrer sobre o carácter censório desta ocultação dos corpos. A virtualização, diria, é uma estratégia para apagar os traços de erotismo que a presença corpo a corpo sempre pode desencadear. Debitaria tudo isto caso fosse dotado para o fazer. Confesso, por outro lado, que esta ocultação dos corpos atrás de um micro monitor, ao lado de outros micro monitores pedidos num monitor mais amplo, começa a ser-me bastante simpática. Talvez o virtual seja o caminho para a virtude. Por virtude não me refiro à perspectiva grega de excelência ou virtuosismo, mas à virtude que se expressa na resistência às tentações. O corpo do outro tornou-se um corpo fantasmático, e de fantasmas deve-se ter medo e não atracção erótica, o que entraria na categoria das perversões. Aqui, contra a minha tese, convém citar o senhor Jacques Lacan, um dos teóricos franceses que estiveram na moda naqueles tempos: toda a sexualidade humana é perversa, se seguirmos correctamente o que diz Freud. Ele nunca concebeu a sexualidade sem ser perversa. Isto é, para o pai da Psicanálise toda a sexualidade – incluindo a normal, esse súbito encontro entre pénis e vagina, fruto possível da posição do missionário – seria perversa. Talvez, o que cada um dos amantes deseje no outro não seja o corpo, mas o fantasma que nele se esconde. Apesar de ter alarmado as boas consciências do seu tempo com uma doutrina que falava da sexualidade, o dr. Sigmund Freud seria um conservador nos costumes, que, no íntimo, acharia que só a mais pura assexualidade não seria uma perversão. O melhor é ficar por aqui, pois não tarda e ponho-me a falar de política e de Wilhelm Reich, o autor de A Função do Orgasmo, que fez a ponte entre a psicanálise e o marxismo, coisas que a minha geração devorou, com o atraso devido a estarmos todos em Portugal, e com a inutilidade que resulta de tudo aquilo que se devora.

terça-feira, 10 de maio de 2022

S. Pedro, S. Pedro

Em tempos, Maio era um mês primaveril. Neste momento, estão 35 graus. S. Pedro enlouqueceu ou, então, foi de férias para o céu de um outro universo que não este. Podemos acordar-lhe que nós, os seres humanos, não somos particularmente virtuosos, sempre inclinados para actividades pecaminosas. É um facto. Contudo, também os santos têm um dever indeclinável com os pobres mortais. Serem misericordiosos. Sem misericórdia não há santidade, presumo. Ora, deixar que se chegue por aqui a estas temperaturas revela pouca misericórdia. Parece mais uma ameaça com as penas do inferno. Não sei se a punição será a melhor estratégia para levar os homens ao bom caminho. Desconfio que o santo proprietário das chaves precisa de fazer formação em pedagogia e psicologia motivacional. É uma impressão. A certa altura de um dos seus livros, Peter Sloterdijk escreve: Nas gravuras do século XVIII aparecem corsários do sexo feminino – de espada desembainhada, blusa aberta e peitos salientes – como que para provar que, no mar, a nova mulher age com toda a autonomia no seu papel de saqueadora. Será por isto que o S. Pedro se recusa a regular o tempo como deve ser? Estará ofendido ver mulheres dedicadas ao corso? Preocupa-o a autonomia feminina? Ficou chocado com a mulher de espada desembainhada? Ou a saliência dos peitos tê-lo-á perturbado? Seja qual for a razão, era bom que houvesse uma rápida reconsideração do estado do tempo. Sobre mim, estas temperaturas têm dois efeitos. Baixam-me a tensão arterial e elanguescem-me os neurónios, no duplo sentido de que ficam mais fracos e mais lânguidos. Neste caso, não é que eles passem a pensar em corsárias de peitos salientes, mas entregam-se a sinapses lentas e langorosas, como se houvesse um problema eléctrico qualquer. As junções sinápticas tornam-se uma coisa indecorosa e de eficiência tendencialmente nula, que se traduz em textos lamentáveis como este. Agora, tenho de me levantar e enfrentar o tórrido calor da rua.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sapiens

Uns adolescentes tentam engrossar a voz na praceta. O peso das hormonas desequilibra-os e desfigura-lhes a frágil humanidade que ostentam. Com o tempo, tudo encontrará o lugar, e eles hão-de esquecer-se das figuras que agora fazem. Talvez cada um de nós tenha de recapitular o processo de evolução da espécie, onde se incluirá por certo aqueles estádios pré-humanos que antecederam a gloriosa alvorada do homo sapiens sapiens. O que acontece, e talvez não sejam poucas as vezes, é que alguns não chegam ao segundo sapiens, ficam pelo primeiro. Outros, nem ao primeiro sapiens chegam, ficam pelo homo. Haverá ainda aqueles que, apesar da figura, não chegam sequer a homo. São hominídeos na aparência, mas não na essência. Nem vou discutir se existem ou não essências. Neste texto existem, e é isso que importa. A cidade está arqueada ao peso do calor. O sol entranha-se na pele e esta parece estilhaçar-se. Ainda vamos em Maio. Sobre a mesa tenho uma carta da Autoridade Tributária e Aduaneira. Abro-a desconfiado e vejo haver razões para desconfiança. Um imposto para pagar. Tenho tempo, penso e deixo a mensagem deslizar pelos dedos. Elenco as coisas que tenho para fazer. Respiro fundo e insulto, entre dentes, a realidade, não vá ela escutar-me. As acácias começam a cobrir-se de folhas. Ainda são árvores com um aspecto esgalgado. Daqui a umas semanas estarão todas cobertas de uma folhagem verde. Serão exuberantes. O galgo que há nelas ter-se-á ocultado. Começo a fazer associações linguísticas que, apesar de correctas, não indiciam grande sanidade mental.

domingo, 8 de maio de 2022

Um perplexo sem guia

Continuo a ler coisas que não deixam de aumentar a minha perplexidade. A quantidade de pessoas que deseja pôr a mão na vida das outras, de lhes dizer como devem viver e o que devem fazer, é alucinante. Esse desejo não é sequer da ordem da enunciação, mas da própria acção. Interferir na vida dos outros, dizer-lhes no que devem acreditar, tudo isso tornou-se objecto de uma militância espalhada um pouco por todo o mundo. O direito de cada um a dispor da sua própria vida como bem entender tornou-se, no delírio crescente que assola este pobre planeta, um sintoma de uma sociedade decadente e corrupta. Dito de outra maneira, ser livre é um sinal de decadência. Como tal, a liberdade dos indivíduos deve ser suprimida. Estas meditações são completamente descabidas num domingo, antes de almoço. Ocorrem, por certo, porque o almoço é mais tardio e haverá uma conexão entre a espera e as considerações mais ou menos mórbidas. O dia, porém, está luminoso, e nada indica que viva numa sociedade particularmente decadente, embora possa estar errado. Talvez devesse dedicar a tarde a ler uns textos do romântico alemão Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, a que deram, em espanhol, o título de Alba del Nihilismo. O almoço interrompeu-me a especulação em torno do livro de Jean Paul. Esqueci-me do que ia dizer, prova suprema da sua irrelevância, como a de tudo o que narro. É domingo, a tarde está a tomar aquela coloração inquietante que antecede a vinda da inutilidade dos dia úteis. Não passo de um perplexo sem guia.

sábado, 7 de maio de 2022

Sábados à tarde

Quando era estudante, havia aulas ao sábado de manhã. Nesses tempos, o sábado não era dia de descanso. Havia aquilo a que se chamava, salvo erro, a semana inglesa. Cinco dias e meio de trabalho e um dia e meio de descanso. Acontecia que, nos sábados à tarde, na pequena província a que pertenço, não havia grande coisa para fazer e lembro-me de ficar diante da televisão a ver os jogos de Rugby do Torneio das Cinco Nações. Uma competição entre a Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda, na qual se imiscuíra a França. Não que fosse, na altura, um especial adepto da modalidade, mas era o que havia para ver, no segundo canal de uma televisão a preto e branco, tal como o país. Lembrei-me disto porque há pouco apeteceu-me ver um jogo de Rugby e procurei um no Youtube, precisamente um França – Inglaterra. Os tempos mudaram, a modalidade foi capturada por um canal de desporto pago, deixei de ver os jogos e o Torneio das Cinco Nações deu lugar ao Torneio das Seis Nações, com a entrada da Itália, a qual, coitada, parece ter sido designada para bombo da festa. Nunca ganhou uma edição e não é previsível que venha a ganhar nos tempos mais próximos. Para além do jogo, tenho estado a ler o livro do historiador Mark Sedgwick, com o título extraordinário – pela sua dimensão – Against the Modern World – Traditionalism and the Secrete Intellectual History of the Twentieth Century. Não se trata de uma obra sobre teorias da conspiração, mas sobre a história dos movimentos espirituais, intelectuais e políticos tradicionalistas e perenialistas que recusam o mundo moderno e os valores do Iluminismo. É espantosa a quantidade de alucinados que existem e, pior do que isso, a influência que têm em muitos acontecimentos dos dias de hoje. Essa influência traduz-se em guerras, como aquela que decorre na Europa, atentados, violência sem fim. Sonham com o retorno do mundo a uma ordem que, muito provavelmente, nunca existiu. Caso essa gente gastasse as energias a jogar Rugby, o mundo seria um local melhor, mas não. Preferem entregar-se ao delírio da especulação e, depois, a tentar que os outros se submetam aos seus pesadelos. A minha neta mais velha veio há pouco. Está a ser sujeita a um conjunto de torturas pedagógicas, que vão do Português à Física, com passagem pelo Francês. Eu tinha a idade dela quando me entregava, nos sábados à tarde, aos jogos de Rugby. Não sei se devemos falar de progresso no mundo. Para a compensar, já marquei mesa para o jantar no restaurante de que ela mais gosta.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Em ritmo slow

Cheguei a casa mais tarde do que é hábito, mas ainda a tempo de, sentado no escritório a olhar para o vazio, ouvir o ensaio do conjunto da escola secundária aqui ao lado. Continua apostado em músicas do tempo em que os avós dos alunos eram jovens e sonhavam com bailes de finalistas ou outro tipo de entretenimento, onde um laivo de erotismo pudesse dar alguma cor aos dias. Havia, tanto quanto me lembro, uma expressão exacta que definia aquilo que era tocado, música para constituir família. Uma prova de que o sexo, naqueles tempos, ainda era visto na antecâmara do casamento, embora tudo isso estivesse submetido ao estatuto social onde se habitava. Esse tipo de música era composto por uns slows, nos quais os pares dançavam quase sem se mexerem, não fossem tropeçar uns nos outros. A coisa teve uma tal dimensão que a palavra slow foi dicionarizada em Portugal para referir tanto o tipo de dança como a música que a acompanhava. Naqueles dias, não se sabia que aquilo que parecia ser uma decisão do livre-arbítrio, uma prova da liberdade, não passava de uma estratégia da vida para se reproduzir, o engodo químico de um aparato hormonal ao serviço dessa vida. As pessoas casaram-se, tiveram filhos. Entretanto, descobriram que se podiam divorciar e tentar reencontrar esse magnífico engodo auroral. Não podem. Cada dia só tem uma aurora, o mesmo se passa com cada vida. Isto, porém, não significa que não possam existir meios-dias muito mais intensos do que a melhor das auroras, mas também bem mais próximos do crepúsculo. Há magníficos crepúsculos junto ao mar, como nos anúncios turísticos, onde a palavra slow volta a ter um peso fundamental. Não como música ou dança, mas como ritmo de um corpo crepuscular. Tudo se torna mais lento, menos o tempo que passa cada vez mais depressa, pouco interessado em slows. Ele não precisa de se reproduzir.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Quase um saudosista

Um equívoco, foi o que pensei, ao passar pela rua e ouvir alguém dizer que vamos ter um Verão péssimo. Não vamos ter um Verão péssimo, já o temos com as garras afiadas e a cair sobre os corpos que ainda ontem se cobriam com medo do frio. Imaginemos que Vivaldi vivia nos dias de hoje. Jamais comporia As Quatro Estações, quatro concertos pertencentes a uma série de doze com o título Il cimento dell'armonia e dell'inventione. Hoje teria de suprimir os concertos referentes à Primavera e ao Outono. Isto é uma prova de que Antonio Lucio Vivaldi era um homem afortunado, pois viveu numa era na qual os homens ainda não tinham começado a interferir no reino de S. Pedro e a manipular o clima. Vivemos numa época de grandes paixões climáticas, com uma inclinação para a bipolaridade. Ora calores intensos, ora frios absurdos. Na rua, por estes sítios, o flagelo do calor já está em velocidade de cruzeiro, sem que se tenha notado a existência de uma fase inicial preparatória ou incoativa. Digamos que desapareceu a harmonia e a invenção que resta é absolutamente dispensável. Que saudades desse tempo em que existiam quatro estações. Não tarda, torno-me um saudosista e começo a falar sobre o Quinto Império e o Reino do Paracleto, eu que nasci numa terra que cultua o Divino Espírito Santo. Nunca sabemos para o que estamos guardados.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Recomposição do rosto

Recomposição do rosto. Não se pense que é o título de um poema ou de um livro de poesia. Não é. Recomposição do rosto é a fase pela qual estamos todos a passar. Com a queda das máscaras, deparamo-nos com rostos que não se coadunam com aquilo que deles víamos quando se escondiam sob o disfarce imposto pelas contingências da pandemia. A emergência dos rostos à plena luz traz com ela uma sensação de inquietante estranheza. Com o passar dos dias, esses rostos inquietantes e desadequados à nossa expectativa começam a fazer sentido, a perder o ar inquietante que revestiram nos primeiros dias de libertação. Além dos rostos, também o tempo se está a recompor, e isso, no que me toca, não são boas notícias. Deve haver em mim uns genes que não são propriamente do Sul, mas de terras sombrias, onde a luz solar é exígua e o calor diminuto. Num livro de poemas encontrei uma factura de um restaurante. Procurei a data. Era de 2017, de cinco de Junho. Nela, encontrava-se o nome do funcionário, aliás excelente. Já não é funcionário nesse restaurante. Isto é uma prova de que a realidade não é imutável e que o tempo teima em não se fixar. O que acho, porém, mais indecoroso é marcar um livro com um papel como aquele, eu que possuo uma colecção de marcadores de livros, cartões de restaurante, bilhetes de cinema, quando estes eram de cartolina ou coisa no género, uma colecção, dizia, que parece não acabar. Também eu estou a precisar de me recompor. E não é pouco, murmura-me a consciência. Ora, se há alguém a quem não devemos dar crédito é à própria consciência. Agora, vou dedicar-me à videoconferência, uma modalidade existencial que nos ajuda a mantermo-nos à distância uns dos outros, o que poderá ser um contributo real para um mundo melhor.

terça-feira, 3 de maio de 2022

As vantagens da literatura

Dmitry Pissarev tinha, numa fotografia acessível por aí, um rosto curioso. Poderia ser o de um santo, poderia ser o de um sábio daqueles que só existiam antigamente. Não era uma coisa nem outra. Era um niilista russo e um revolucionário. Um anarquista. Afogou-se, em 1868, com 28 anos. Não consegui apurar a categoria do afogamento. Suicídio? Crime? Acidente? Tinha uma singular maneira de ver a realidade. Singular, não porque fosse única ou extravagante, mas porque, apesar do seu niilismo, era bastante comum, senão trivial. Ele achava que para o homem comum um par de botas conta muito mais do que as obras completas de Shakespeare ou de Puchkine. E nisto ele é acompanhado pelos milhões e milhões de homens comuns, mas não só. Também Van Gogh, que estava longe de ser um homem comum, se interessou por velhos pares de botas mais do que pelas obras completas de Shakespeare ou de Puchkine. O círculo de niilistas russos tinha ideias que não deixaram de se propagar pelo mundo. Ações directas e violentos, terrorismo. Para quê? Para pôr fim ao czarismo e depois reconstruir cientificamente a sociedade para o rebanho dos homens comuns e respectivas mulheres comuns, com os respectivos filhos comuns, isto é, a massa, terem a felicidade assegurada. Todos os séculos são cruzados por inúmeras ideias radicalmente idiotas, mas o XIX deve ter tido um fornecimento suplementar. Uns queriam chegar à pura liberdade através de uma férrea ditadura. Outras queriam assegurar a felicidade pela promoção da infelicidade. Ora, se em vez de tudo isso se entretivessem a ler Shakespeare e Puchkine, o mundo não seria pior nem os homens comuns mais infelizes. A literatura tem muitas e insuspeitas vantagens.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Problemas de afectividade

Deveriam existir dias feriados de compensação. Compensar o quê? Os feriados que calham ao fim-de-semana, como aconteceu ontem, coisa de qua ainda não estou recuperado. Dever-se-ia também incluir o domingo de Páscoa. E então a produtividade nacional, perguntar-se-á. A minha hipótese é de que ela aumentaria. Os corpos e as mentes precisam de um certo tempo de recomposição e aquele que é dado parece-me exíguo para quem quer obter grandes performances. Acabei de dar uma vista de olhos pelos jornais. As novidades são muito cansativas. Estão sempre a repetir-se. A grande novidade seria a da anunciação de que a partir de agora os homens deixariam de ser homens e tornar-se-iam outra coisa. Por exemplo, seres civilizados. Contudo, a palavra civilização – de onde nos chegariam os seres civilizados – não me parece muito promissora, pois tornou-se moda fazer guerra e matar em nome da civilização. De tudo o que vi, a única esperança num mundo levemente mais decente foi a proposta, no parlamento português, de se fazer uma experiência de semanas de quatro dias de trabalho. Parece-me decente, mas inviável. Não porque o seja economicamente, não o é, mas por um motivo sentimental. As entidades empregadoras têm imensas saudades dos seus empregados. Gostam de os ver, de os ouvir, de trocar dois dedos de conversa com eles. Durante o fim-de-semana, quase morrem – e falo literalmente – de saudades deles. Não fosse a tirania do Estado, e elas, as entidades, haveriam de conviver com os empregados sete dias por semana. Como é que iriam suportar estar três dias por semana sem aquela doce companhia? Adoeceriam e entupiriam o serviço nacional de saúde ou os hospitais privados, talvez mais adequados. Como se vê, uma tão boa ideia choca de imediato com a realidade, o bem-estar das entidades empregadores e a saúde pública. O autor está furibundo com este pobre narrador. Que este texto cheira a política. Eu esclareci-o que era falso. Trata apenas da saúde e dos afectos. É um texto cheio de afecções. Se não a semana de quatro dias, ao menos os feriados de compensação.

domingo, 1 de maio de 2022

Animais humanos

Chegou o mês que, por tradição, traz os calores despropositados. Ainda não serão dias de quarenta graus, mas a anunciação do inferno já se fará sentir. Sem se dar por isso, um terço do ano está cumprido. Nestes quatro meses, vimos começar uma guerra aqui ao lado, perigar a segurança a que nos tínhamos habituado e ainda pôr de lado, por cansaço e habituação, a pandemia que nos tolhe a vida há dois anos. São tempos para especulações escatológicas. Estas têm sempre um mercado razoável e nunca falta uns tresloucados prontos para alimentar os temores e as meditações negras. Em tempos, esteve na moda caracterizar o homem como um animal racional. Pertenceria ao género animal, era um ser com anima (alma, princípio de vida), e a racionalidade era a diferença específica que o separava dos animais não humanos, como se tornou uso dizer. A questão, porém, é que o casamento entre a animalidade e a racionalidade não parece ser coisa particularmente benéfica. A razão deu aos animais humanos um poder destrutivo que não teriam, caso fossem dela privados. Não apenas seriam incomensuravelmente menos destrutivos, mas também muito mais felizes. Regulados pelo instinto, agiriam de acordo com os ditames da natureza ou de Deus – conforme a crença do leitor – e não teriam qualquer meta a alcançar, qualquer ideia que os tornasse desavindos consigo mesmos. Pensou-se que a razão seria uma estratégia para aplacar a nossa animalidade. O que se vê, porém, desmente essa pretensão. A razão é o modo como um animal frágil se torna um terrível predador. Agora que já me conferi o direito de tratar da bílis em público, volto para a música de Orlando di Lassus, os Salmos Penitenciais de David, na interpretação do The Hilliard Ensemble. Tendo esta música sido escrita e interpretada por seres humanos, desconfio que, apesar de tudo, o animal racional que há em nós ainda não estragou tudo. É uma suspeita. O pior será o calor que nos espera, caso não nos espere coisa pior.

sábado, 30 de abril de 2022

Cifras e decifrações

O teólogo metodista argentino Pablo Rubén Andiñach começa a introdução à sua obra El Libro del Éxodo com a seguinte proposição: Todo o texto é um enigma a decifrar. O espantoso é a inexistência de um adjectivo que restrinja a amplitude da afirmação. Poderia ser por exemplo todo o texto sagrado, ou todo o texto bíblico, ou todo o texto literário. Não é isso, porém, que Andiñach diz. Qualquer texto é enigmático. Imaginemos um texto trivial: passa pelo supermercado e traz limões. É um texto, logo, segundo a proposição exposta acima, é enigmático e precisa de ser decifrado. Coisa que qualquer um de nós achará ridícula. No entanto, só podemos imaginar que um texto como passa pelo supermercado e traz limões não é enigmático porque estamos na posse da cifra que permite decifrá-lo. Uma pessoa, mesmo sem sair da trivialidade e apesar de entender o texto, pode perguntar: qual supermercado e quantos limões? Ou então, quando deverá passar pelo supermercado? O carácter enigmático de qualquer texto reside na sua autonomia relativamente ao momento da sua produção. Ficam ali aquelas palavras que, por mais que as interroguemos, dirão apenas o que lá está. O que lá está é, pelo menos, duplamente cifrado. Representa a cifragem da intenção de quem o escreveu e a cifragem do texto abandonado a si mesmo, limitado por aqueles elementos que o constituem. Em vez de escrever estas palermices poderia estar a ver a corrida da Fórmula E, que está a passar num canal desportivo, uma competição em que os carros são eléctricos. Isso tem um tremendo impacto na musicalidade do automobilismo. Enquanto na Fórmula 1, os carros roncam poderosamente, na Fórmula E, zumbem como insectos gigantes ou balas à procura do seu alvo. O que se pode perguntar é se o roncar de uns e o zumbido de outros será transformável em texto que mereça ser decifrado. Há uma grande preocupação musical com a linguagem dos pássaros, mas deveríamos também dar atenção à linguagem dos objectos. Comporão, por certo, textos enigmáticos à espera do decifrador certo. Hoje acaba Abril e a minha imaginação continua sem dar sinais de melhoras.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Ignorância e presunção

Confirmei agora que os meus vizinhos pássaros voltaram das férias que foram passar mais ao Sul. Já tinha escutado umas conversas, mas isso não era uma prova definitiva do retorno. Poderiam ser alguns batedores que vieram mais cedo para inspeccionar as casas e o território, assim como o estado climatérico, pois não sou só eu que se interessa pelas metamorfoses do tempo. Os pássaros também necessitam de boletim meteorológico e é provável que possuam uma app orgânica para o consultarem. Depois, devem enviar informação, talvez em código morse, para os bandos que esperam para retornar aos lugares do passado. Há neste nomadismo das aves uma coloração conservadora, um desejo de retorno aos mesmo lugares. Tudo isto, porém, é imaginado por mim, pois a ornitologia é uma das incontáveis coisas de que nada sei. Sempre poderia usar aqui o velho aforismo socrático, só sei que nada sei. Isso, porém, seria de uma presunção desmedida. Não por me equiparar ao velho Sócrates, o marido de Xantipa, o mestre de Platão, mas porque a frase é absolutamente presumida e se Sócrates realmente a pronunciou, então ela era o maior dos presunçosos. Pior do que presumir que se sabe tudo é presumir que não se sabe nada. O que me preocupa, todavia, é o que se passa no friso das orquídeas. Só cinco estão floridas. Já foram seis, mas uma deve ter tido uma moléstia qualquer que as flores, belíssimas, mirraram rapidamente e caíram. Flores mortas. Chego sempre às sextas-feiras com défice de assunto, pareço-me, nesses dias, com um orçamento do Estado, sempre deficitário. Se por acaso orçamento do Estado for assunto político, então retiro a analogia. Acho que vou dormir um pouco para compensar as noites mal dormidas. Aliás, são todas mal dormidas. Recebo uma mensagem no telemóvel para aderir a um certo Challenge. O prémio, um telemóvel. A vida tornou-se uma viagem dentro do telemóvel. Não estou para desafios.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Traduções do diabo

Um dia votado a tentar resolver coisas quase irresolúveis. Como se costuma dizer, o que não tem solução solucionado está. A verdade, porém, é que quase irresolúvel não é a mesma coisa do que sem solução. O quase irresolúvel pede tempo para se tornar solúvel e ser dissolvido. Num livro que tenho entre mãos descubro uma palavra extraordinária: inegalidade. O termo, claro, não existe no nosso léxico, mas no do tradutor de uma obra escrita em francês. O autor escreveu inegalité, o que se traduz por desigualdade. Com boa vontade poder-se-ia verter por inigualdade, o que seria uma negação de igualdade. Seria vocábulo possível dentro das regras de formação de neologismos, penso. Espantado com a tradução, procurei pelo nome do tradutor. Novo espanto. Não tinha. A tradução era atribuída de forma genérica à editora nacional. Que eu saiba nenhuma sociedade comercial, industrial ou de serviços, mesmo que seja uma editora de livros, consegue fazer traduções. Estas são feitas por seres humanos ou, hoje em dia, pelos tradutores automáticos baseados na Inteligência Artificial, que depois é corrigida pelos seres humanos. Perante isto, a minha vontade é deitar o livro fora e comprar a edição original. Ainda por cima, para poupar no papel, a nossa editora encolheu o tamanho das letras a níveis impensáveis. Devo estar com mau feitio. Deve ser fruto das coisas quase irresolúveis que tenho pela frente. E essas nada têm a ver com traduções assombrosas e a invenção lexical como solução da ignorância. Quanto ao tamanho das letras, talvez tenha de mudar de lentes.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Sarabanda

Um concerto de moto-serras e corta-relvas. Os transeuntes passam indiferentes ao agrupamento musical que opera com zelo na praceta aqui em baixo. Também é verdade que eles não puseram um boné no chão ou estenderam um lenço para recolha de moedas. Estes concertos têm lugar, muitas vezes, ao sábado de manhã. Por volta das oito horas lá começa a sarabanda, não sem antes haver afinação de instrumentos. Uma forma de terrorismo psicológico. Já era tempo dos inventores dados à criatividade conceberem instrumentos destes que não fizessem ruído. Eu sei que os admiradores de música poderiam acusá-los de destruir sonoridades tão peculiares. Contudo, posso argumentar, também o silêncio faz parte da música. Se o ciclo sonoro fosse mais curto diria que estávamos perante um concerto de música minimal repetitiva. Contudo, o fraseado é sempre o mesmo, mas não tem efeito hipnótico. Agora, tenho de sair. Esperam-me e não devo chegar tarde. Esse é o meu hábito, mesmo que a minha vontade seja de chegar muito tarde ou, mesmo, de não aparecer. Mas lá estarei à hora. Nisto não há qualquer grandeza moral. Haveria, se isso se devesse ao meu livre-arbítrio, mas deve-se apenas a um hábito, e os hábitos, como se sabe desde Aristóteles, são uma segunda natureza. Logo, regidos pela estrita necessidade.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Mudança de paradigma

O feriado desliza lentamente para o seu fim. A ordem do mundo seria menos cruel se todos os dias fossem feriados. As pessoas não precisariam de trabalhar, nem de fazer guerra, apenas colher aquilo que a natureza enviasse como dádiva. Contudo, um problema intrometeu-se nesse estado paradisíaco. O problema não é muito claro. Não se consegue perceber se a natureza não é assim tão dadivosa ou se os homens querem muito mais do que lhes seria permitido. Nos dois casos temos um problema de egoísmo. Ou a natureza é egoísta ou são os homens. Independente da resolução deste quebra-cabeças, o facto é que os dias feriados são excepções e não a regra. A regra é fazer alguma coisa pela vida. Para além destes lugares comuns não me ocorre mais nada para escrever. Poderia falar sobre a natureza do feriado, mas como ele é de índole política, estou proibido de falar desse assunto. Poderia falar do estado do tempo, mas isso começa a ser uma trivialidade excessiva. Não posso escrever todos os dias sobre se há ou não nuvens no horizonte, embora todos saibamos que existem sempre nuvens no horizonte, mesmo que não as vejamos, pois, o horizonte é uma metáfora de largo espectro. Tão largo que sempre se hão-de encontrar nuvens em algum sítio. Esse será o horizonte ou a linha do horizonte. Podia também falar sobre paradigmas, pois é coisa de que toda a gente fala. Não há cão nem gato que não esteja disposto a mudar de paradigma. Também a mim me faria muito bem mudar de paradigma, mesmo quando falo de feriados e da ordem do mundo. Falece-me, porém, o instinto revolucionário para provocar uma mudança paradigmática. Neste momento do feriado só conheço dois paradigmas. O estar a dormir e o de estar com sono. Uma revolução sempre me haveria de conduzir da sonolência ao sono profundo. Seria a minha mudança de paradigma. Quanto à mudança de paradigma ocorrida há 48 anos, não posso falar sobre ela, proibido que estou pelo autor, mas confesso que me soube muito bem e essa não foi a transição entre a sonolência e o sono, mas o fim de um estado de sonambulismo atávico. Quero que o autor se…

domingo, 24 de abril de 2022

Desavença consigo

Tem estado um Abril frio, oiço dizer, mas como continuei a andar não sei a sequência da conversa. Talvez a frase escutada fizesse parte de uma belíssima narrativa que perdi devido à minha pressa de chegar a algum lugar. É assim que se esbanjam as oportunidades da vida. Passamos por elas, mas como estamos apressados não damos por aquilo que dissipamos. Isso também acontecerá para as más, digo-me, mas estou longe de concordar comigo. É uma coisa que sucede a muito boa gente, o estar desavinda consigo. Isto recordou-me um belíssimo poema de Sá de Miranda. Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Existem pessoas que ostentam como um grande troféu a coerência. Tiro-lhes o chapéu, mas desconfio que a sua coerência nasce de uma amputação. Foi-lhes retirada uma parte e assim não apresentam desavença consigo, o que lhes permite apresentarem-se no teatro do mundo como sendo fiéis a si mesmas, de dizerem hoje o que disseram ontem. Os não amputados, porém, têm de viver constantemente em perigo, pois habita-os uma discórdia que traz para dentro de si uma guerra civil. Assim, como estratégia de sobrevivência, dizem hoje uma coisa e amanhã, uma outra. Se o início do poema de Sá de Miranda é magnífico, não o é menos o fim de um soneto do mesmo autor: Então não tem lugar certo onde aguarde / Amor; trata de traições, que não confia / nem nos seus. Que farei quando tudo arde? Este soneto que acaba com uma das mais belas frases interrogativas da língua portuguesa tem também por motivo a dissensão dentro de si, a luta entre o amor e a razão. Em resumo, há boas razões para qualquer um estar desavindo consigo, um mal que vem por bem, pois as pessoas que, movidas por um inultrapassável acordo consigo, são aquelas que não hesitam em incendiar o mundo, aquelas que nos fazem perguntar: Que farei quando tudo arde? Hoje é domingo de Pascoela e já me imaginei a caminhar pelas ruas, onde estão pessoas que contam história interessantes, das quais capto pequenos excertos para vir aqui narrar.

sábado, 23 de abril de 2022

Segredos

Chegámos ao penúltimo sábado de Abril. A aplicação do telemóvel afirma, peremptória, que há 83% de probabilidades de chover. A verdade é que não se vislumbra água que possa precipitar-se dos céus. Continuo com falta de assunto. Resta-me apenas escandir o calendário e o clima. Estas duas palavras, que significam coisas tão diferentes, poderiam ser ambas substituídas pela palavra tempo. Esta, umas vezes, significa as condições meteorológicas num certo lugar e numa determinada altura ou, outras vezes, um certo período onde se dão acontecimentos. Sendo hoje sábado, penso não ser propício dedicar-me a uma meditação sobre a polissemia das palavras. Numa daquelas leituras estapafúrdias a que me dedico recebo a informação de que em 1900, metade dos membros da Câmara de Deputados de França era maçon, o que se celebrava numa anedota de gosto popular que insinuava ser a Maçonaria a Igreja da República. Há em todas as organizações secretas um reflexo da infância, daquele tempo em se brinca às escondidas ou que se cultiva o segredo como forma de afrontar os outros. Talvez esta tendência para o velamento e o segredo tenha sido uma vantagem competitiva na evolução da espécie e, por isso, os homens continuam a jogar às escondidas e a brincar aos segredos, muitas vezes de polichinelo. Os pássaros meus vizinhos estão cada vez mais audíveis. Conversam longamente, mas ainda não consegui traduzir-lhe a linguagem. Falta-me uma pedra de Roseta. Também é um facto que não sou um Champollion, mas ele também não seria o Champollion que é caso não tivesse tido o encontro com a pedra de Roseta. Não se pense que a pedra pertencia a alguma Rosa que tratavam pelo desagradável diminutivo de Roseta, em vez de Rosita ou de Rosinha. Não era. Roseta é o nome de um dos braços do delta do Nilo. Nem tudo o que parece é e a polissemia nunca deixa de nos perseguir. O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado reverbera sob a inclemência dos raios solares. Não vai chover. Os 17% ganharão aos 83%.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Universos e informações

Consta que chegou o fim-de-semana, e que será alargado. Assim como o universo – ou um universo – se expande, também é verosímil que os fins-de-semana se expandam. O problema é que, ao contrário do universo, sofrem logo a seguir uma súbita contracção. O mais dramático de tudo isto é que o venerável S. Pedro – santo titular da cátedra do clima – decidiu não emparelhar a expansão do fim-de-semana com a manifestação do bom tempo. Segundo me contaram, terá dito que andavam a queixar-se com falta de água, as barragens vazias, as culturas a morrer de sede, e que, para atender às súplicas, tinha de trabalhar por estes dias. Que não pensassem, por aqui, que era maldade sua. É um mal permitido por Deus, acrescentou, porque dá lugar a um bem maior. Por mim, aceito as explicações do santo e não protesto. Aproveito, para ir à janela ver chover, enquanto o dia se vai desvanecendo, perdendo o fulgor, deixando um rasto de tristeza nas ruas. Volto à questão dos títulos. Numa entrevista ao neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, o Público puxou para título a seguinte frase: Para o Universo adquirir a sua existência, precisou de um narrador. De um momento para o outro, a minha função de narrador está justificada. Faço vir à existência um universo. Não será um grande universo, mas também eu não sou grande narrador. Deixemos o meu pequeno universo de lado e concentremo-nos no outro, naquele que se expande. O que será esse universo, caso não exista um narrador? Será apenas, diz o neurocientista, uma gigantesca massa de informação potencial. Caso exista um cérebro, então este capta essa informação para gerar representações. Um teatro, digamos assim. Todas essas belas paisagens, todos esses luares, sob os quais os amantes passeiam incógnitos, de mãos dadas e com o coração a fervilhar, não passam de informação. Só existem para nós. Uma decepção. Há muito que me parecia que a realidade não era coisa que se recomendasse. Por mim, prefiro aquela narrativa em que existe um S. Pedro que comanda o clima e que hoje está a fazer chover – chuva autêntica e não informação potencial – sobre narradores e sobre os lugares onde não existem narradores. Ah… parece que a chuva também é uma representação a partir de informação potencial. Vou-me calar. Bem, uma última questão: será que a informação potencial está em expansão ou é apenas a nossa narrativa produzida pelo nosso cérebro?

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Título

Muitos dos títulos que Hans Kluge atribui aos seus textos na Crónica dos Sentimentos são por si só pequenas obras-primas. Este, por exemplo: Ela queria ser tratada pelo menos com a atenção que é dedicada às coisas. Está-se praticamente no grau zero da exigência de reconhecimento. Ela nem sonha em ser tratada como um ser racional entre outros seres racionais. Também terá desistido de merecer a atenção de um animal ou mesmo de uma planta. Resta que a reconheçam como uma coisa. Talvez existisse nela uma desmedida e um sonho extravagante. Muita gente dá uma atenção sem fim a certas coisas. Por exemplo, dispositivos técnicos como carros, objectos de colecção, coisas da própria natureza. Muitos de nós têm pouca capacidade de olhar para os seus semelhantes, concentrando-se quase por completo nesse domínio silencioso que são as coisas. O título de Kluge torna-se então ambíguo. Aquela mulher estava a exigir o menos possível ou, pelo contrário, a fazer uma exigência extraordinária. Não é relevante saber o que o texto diz. O importante é que o título contém em si múltiplos textos possíveis. Isto conduz-nos a um tema interessante. A relação entre o título e a obra. O título será sempre – mesmo se descritivo – uma abertura de possibilidades. A obra, pelo contrário, é o exercício em que todas as possibilidades são descartadas com excepção de uma. Quantas histórias seriam possíveis sob a designação de Os Maias? Imensas, mas o génio de Eça de Queirós liquidou-as a todas, menos uma. Talvez escrever seja isso. Escolhe-se – ainda que inconscientemente – um título e, depois, começa-se a limitá-lo, desbastando-lhe os conteúdos possível, tal como faz o escultor com a pedra intocada pela sua arte ou o pintor com o branco que o pincel vai limitando. A arte seria assim um exercício de destruição e não de criação. Destruição dos possíveis para que fica apenas um que pareça irremediavelmente necessário. A luz de quinta-feira, uma luminosidade cinzenta e ameaçadora, parece não estar a fazer-me bem. O que vale é que logo terei uma consulta. Mesmo que nada tenha a ver com os efeitos luminosos, como é o caso, só a presença da autoridade médica me disporá, por certo, a pensar em coisas menos inúteis do que títulos.