sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Em quarta mão

Vender produtos em quarta mão. O produto para venda é a ideia de que, em certa altura, no mercado parisiense de Les Halles se produzem mais figuras de estilo num só dia do que em toda a Eneida. Porquê quarta mão? Porque vi a afirmação num artigo de António Guerreiro no Público. Este repetia o gramático Pierre Fontanier (1765-1844), que por sua vez ecoava (sic) o poeta Nicolas Boileau, nascido em 1636. O assunto que motiva o texto de AG não me interessa, mas a frase orienta o olhar para uma realidade diferente daquela que esperamos. Cremos que a linguagem comum seja mais dada à referencialidade directa, menos propensa à equivocidade semântica, enquanto a literária seria um trabalho de jardinagem em que se cultivaria o adorno discursivo através do recurso às figuras de estilo. A realidade poderá ser outra. A linguagem comum – e haverá linguagem mais comum, mais corrente ou vulgar, do que aquela que se usa num mercado? – será um lugar borbulhante de inovações semânticas, uma espécie de fogo-de-artifício contínuo, onde a linguagem se inventa, se cria e recria, além de se recrear, enquanto o trabalho literário é um exercício de contenção desde borbulhar, a troca da exuberância de um vinho espumoso, por um denso e austero tinto, com uma longa vida ainda pela frente. A arte poética não estaria tanto no metaforizar, mas no conter da metáfora dentro de uma frugalidade rigorosa. Com tudo isto quero apenas dizer que produtos em quarta mão podem ajudar muito bem a pensar e que a sabedoria reside na reciclagem e não na produção contínua de desperdício.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Animação extramusical

Como temia, repetiu-se no concerto de ontem a cena do de domingo. Quem comprou os bilhetes online tinha-os com indicação de lugar, ao contrário de quem os comprou na bilheteira. A organização ainda tentou sentar, no seu lugar, a pessoas com lugares marcados, mas em vão. No meu, estava um senhor que, fui de imediato informado pela funcionária da organização, se recusava sair daquele lugar, aquele era o dele, desse por onde desse. Teria mais uns vinte anos do que eu. Só pedi que nos dessem quatro lugares seguidos e que não fôssemos incomodados pelos detentores daqueles lugares. Uma confusão sem fim, que atrasou o concerto em quase vinte minutos. De vez em quando, o pianista, Artur Pizarro, espreitava, meio divertido, a confusão. Tudo acomodado, a organização pediu desculpa, mais uma vez, mas a responsabilidade era da empresa que vendia os bilhetes online. A tradição ali é não haver lugares marcados, o que dava razão ao senhor que ocupara, de modo selvagem, o lugar que deveria ser o meu. Depois de agradecer o aplauso do público no fim de tocar as peças de Fauré, o pianista informou os presentes de que o cachet para solista era maior que o dos artistas de música de câmara e que ele tinha contas para pagar, precisava de receber como solista. Disse-o em português e em inglês. Depois, pediu para desligarem os telemóveis. Alguém se entreve a receber mensagens enquanto o concerto decorria, num diálogo com a música de Gabriel Fauré. Para além do desempenho de Pizarro, o programa extramusical foi dos mais interessantes a que já assisti e as minhas netas estavam divertidíssimas com a animação ou talvez com a expectativa de irem à feira andar de carros de choque, que nunca se sabe o que vai na cabeça de qualquer adolescente.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Perplexidades

Há um quadro famoso do pintor florentino do século XVII, Lorenzo Lippi, que alimenta inúmeras controvérsias, a começar pelo título da obra, Mulher com Máscara ou Alegoria da Simulação. São múltiplos os ensaios interpretativos, com a exploração da simbólica presente no quadro – a máscara, na mão direita, e a romã, já fendida, na esquerda – e também da figura da jovem mulher. Há duas coisas que me deixam perplexo. Em primeiro lugar, a indecisão sobre a acção representada. A mulher está a tirar ou a pôr a máscara, ou nem uma coisa nem outra, apenas a exibe sem intenção de a utilizar? O mesmo se passa com a romã. Foi acabada de receber ou, pelo contrário, está a ser oferecida, ou é apenas uma exibição do fruto? A segunda perplexidade deve-se ao estranho afastamento entre os dedos anelar e médio da mão direita, a que segura a máscara. Olha-se e fica-se com a sensação de que ali caberia outro dedo ou que falta um dedo entre aqueles dois. Estas duas perplexidades parecem-me ser a porta que fecha para sempre o mistério do quadro, o que tem um efeito interessante. Quebra a tentação narrativa, a ideia de contar uma história interpretativa da obra, obrigando à suspensão do discurso para dar lugar à pura contemplação da obra. Agora, depois deste discurso contra o discurso, vou recolher-me para tomar uma decisão. Será que devo tomá-la fazendo o caminho da deliberação, o raciocínio prático do velho Aristóteles, ou suspendo o discurso e deixo que uma intuição me ilumine na decisão a tomar? Não se pense que é uma coisa importante, apenas se devo ou não comprar um certo produto. Se a deliberação estiver errada ou a intuição me iluminar mal, não perderei grande coisa.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Por uma Teologia científica

Não admira que a Teologia seja, nos tempos que correm, uma área científica menosprezada. A culpa, ao contrário do que pensam mentes pouco iluminadas – seja pelo espírito das Luzes, seja pelo Espírito Santo, seja pela luz eléctrica – não está no êxito transbordante das chamadas ciências empírico-analíticas, que com o seu sucesso permitem conhecer a realidade e encher o mundo de dispositivos que servem para tudo e mais alguma coisa, inclusive para dar cabo do mundo. A culpa desse longo ocaso da Teologia reside no pouco interesse, ou mesmo nulo, que os teólogos profissionais votam aos problemas teológicos verdadeiramente pregnantes. Por exemplo: que distância vai do vestíbulo do inferno à antecâmara do paraíso? Se os teólogos se interessassem pelo problema, diriam, por certo e dentro da sua previsibilidade, que sendo o inferno e o paraíso, a priori, locais incomensuráveis, a distância entre ambos é infinita. Não precisamos de recorrer à experiência para saber uma coisa que até a razão natural sabe. Embora não sendo teólogo, posso dar um contributo para uma Teologia científica, matematicamente fundamentada e que coloque os teólogos no devido lugar. A distância entre o vestíbulo infernal e a antecâmara do céu é de dezassete graus celsius, medida hoje entre dois locais onde estive. Num, por acaso o sítio onde entretenho a minha existência, estavam 41o. No outro, aquele onde me refugio do bafo atenazador dos diabos, o termómetro marcava 24o, por certo a temperatura do Éden quando o Senhor Deus dava por lá os seus divinos passeios e Adão e Eva se escondiam, já encalorados, sabe lá bem porquê. Como se demonstra aqui, não apenas a Física pode ser matematizada, mas a própria Teologia se deve constitui como uma Teologia matemática. Prova-se assim que a distância entre o inferno e o paraíso é uma distância térmica, mensurável por qualquer aluno do ensino básico. Fica aqui o meu contributo para o desenvolvimento da ciência. Amanhã, caso me lembre, irei reflectir, no campo da linguística, sobre o estranho caso da palavra pregnante. Sou um poço de sabedoria, onde me afundo a toda a hora.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Com e sem lugar marcado

Comprar livros em segunda mão online não tem só vantagens. Também há inconvenientes. Tive em tempos, embora nunca tenha chegado a ler, um romance de Julien Green denominado Moïra. O que lhe aconteceu, não sei. Decidi comprar outro exemplar num alfarrabista que vende em plataformas tipo olx. O livro veio em bom estado. O único problema é que o antigo proprietário deveria ter uma fixação na sua rubrica. Muitas páginas – quase metade, por certo – está rubricada. Gostava de perceber o que terá passado pelo cabeça da pessoa que decidiu, por amor à propriedade, afirmar a posse daquela maneira exuberante. O cuidado foi inútil, pois o livro voltou para o mercado e aquela assinatura já não serve para nada, a não ser para estragar o livro. Ontem, com as minhas netas, fui ver um concerto com o pianista japonês Jun Kanno. Mozart, Chopin e Debussy. Uma viagem do classicismo ao impressionismo, com passagem pelo romantismo, embora nada disso tenha uma grande importância. Elas, as minhas netas, aproveitam estas ocasiões para fazerem, com os avós, um programa complementar ao agrado delas. O pior do concerto foi o facto de o público estar dividido em duas facções. Os que compraram bilhete na bilheteira e os que compraram online. Os primeiros não tinham lugar atribuído. Os segundos, pelo contrário, traziam inscritos nos bilhetes o lugar que lhes competia. A interpretação da organização era de que não havia lugares marcados, o que gerou uma bela confusão na sala. As coisas lá se compuseram sem grandes atritos, o pianista entrou na sala e a confusão desapareceu. Foi uma experiência nova e interessante. Estou expectante com o que vai acontecer no concerto de quarta-feira.

domingo, 6 de agosto de 2023

A nódoa

A única vez que falei aqui do assunto, um dos mais fundamentais na existência da humanidade, foi a 1 de Setembro de 2019. Isso, devido àquela história da pandemia, significa que foi noutra era. Sobre ele, o assunto, há várias teses, embora não tenha a certeza de que sejam incompatíveis entre si. Existem teses negativas e teses afirmativas. Um exemplo de uma tese negativa diz-nos que as mulheres, às refeições, nunca põem uma nódoa na roupa que trazem vestida. Talvez existam alguns casos esporádicos, o que mostraria a tese como falsa, mas há outra possibilidade para interpretar esses escassos eventos. Nesses fortuitos encontros entre a nódoa e a roupa feminina, a mulher não estava a ser mulher, mas sofria de um súbito toque viril e, nesse instante, estava possessa por uma substância que lhe é estranha. Portanto, acontecimento raro e que não refuta a tese. As teses afirmativas dizem respeito aos homens ou a algum em particular, neste caso eu. No campo das teses gerais, há uma que diz que a propensão a pôr nódoas na camisa é inerente ao cromossoma sexual ípsilon. É uma tese respeitável, corroborada por muita gente. A tese particular, a que me diz respeito, sublinha que sou um praticante desastrado e desatento da arte de comer sem se sujar. Por vezes, são retirados corolários que põem em evidência o meu desacerto com a realidade. É possível que seja assim, mas há coisas que têm uma atracção fatal por mim. Melgas, moscas e nódoas. Deixemos os insectos para outra ocasião. Como se sabe, a nódoa é um ser parasitário. Sem um hospedeiro, não existe. Quando uma nódoa ainda não o é, mas existe já em projecto, observa os circunstantes à mesa e, por norma, escolhe a roupa que eu trago vestida. Posso aceitar que todos os homens sejam potencialmente hospedeiros, mas faço-o contrariado. Quero pensar que elas, as nódoas, têm uma terna inclinação por mim e me escolhem para virem ao ser, tornando o mundo mais rico e variado.

sábado, 5 de agosto de 2023

Expulsão do paraíso

Em tempo de férias, tiro o relógio e esqueço o calendário. A desmemoriação, porém, não é tarefa fácil. Não faltam por aí relógios a debitar as horas e não é empreitada simples esquecer a sequência dos dias da semana. Não tenho a certeza, mas penso que foi no primeiro dia da escola primária que o tempo entrou na minha vida. Até aí, não havia dias úteis e dias inúteis, não havia horas ou minutos, apenas a regulação maternal das horas de dormir e de estar acordado, ou os tempos das refeições. Não me consigo recordar, mas imagino que não separaria as manhãs das tardes, apenas o dia e a noite se mostravam no seu antagonismo. Dos primeiros dias dos anos lectivos que vivi, e não foram poucos, só me lembro do primeiro, de ser acompanhado à escola pela minha mãe e de lá haver uma turbamulta azougada. Não percebi que, nesse instante, eu era um pobre Adão a ser expulso do paraíso, cujas portas foram irremediavelmente fechadas. O facto de não perceber não significa que o ferrete não se tenha inscrito duradouramente em mim, de tal modo que estou agora, passadas tantas décadas, a falar dele, num tributo ao princípio e irresponsabilidade que toda a infância significa. Pior do que eu, está o meu neto. Ainda antes de entrar na escola, já se encontra na escola travestida de pré-escola, o que significa que o progresso educacional da humanidade é feito à custa de uma expulsão do paraíso sempre mais precoce, como se se cometesse o pecado original cada vez com menos idade.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Contra a abdução

Poderia recorrer à abdução, a um argumento a favor da melhor explicação. Contudo, acho a melhor explicação destituída de espírito. Oiço – e não estou com alucinações auditivas, embora não o possa provar – o ruído insuportável de um aspirador. Como poderia justificar a tese de que o aspirador é ruidoso? A melhor explicação seria que a mecânica do aspirador não é suficientemente sofisticada para o tornar silencioso. Isto, porém, é justificação que se dê? Claro que não. O aspirador é ruidoso por dois motivos. O primeiro é que faz parte activa e consciente de uma conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo. Não existisse uma conspiração contra mim e o aspirador seria uma das máquinas mais silenciosas ao cimo deste pobre planeta. Uma segunda razão, talvez tão fundamentada quanto a primeira, diz-nos que caso o aspirador fosse silencioso, este narrador não teria o que escrever. Eu sei que os lógico-dependentes acharão as minhas razões estapafúrdias, pouco plausíveis, como eles logo afirmariam. Contrariam o natural bom-senso e o argumentário a favor da melhor explicação, uma estratégia lógica com a finalidade de fazer prevalecer o bom-senso sobre a falta de senso. Ora, o que é o mundo e a vida mundana senão falta de senso. A minha tese é que se tudo se regesse pelo bom-senso, o mundo não existiria, implodiria devido à pasmaceira universal instalada. Não há como uma citação apócrifa para demonstrar a minha razão. Apesar de não ter sido proferida por Tertuliano, apesar da absurda e contumaz insistência, a proposição Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo) é um fundamento indestrutível da minha crença de que a falta de senso é superior ao bom-senso. Enquanto se mantiver a conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo e eu não encontrar motivo para escrever, os aspiradores continuarão apostados – sim, eles têm vontade própria – em escolher das ondas sonoras aquelas mais desprezíveis e mais malévolas do que a Rainha da Noite. Por mim, tenho encontro marcado com a Rainha de Copas, que me convocou. Seria falta de senso não respeitar uma convocação de Sua Alteza.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Ver o Papa

Ontem acabei a postagem com a referência à visão – literal – das minhas netas da pessoa do Papa. Só mais tarde recebi a notícia de que o meu neto também viu sua Santidade. Imagino que ele, a caminho dos cinco anos, não faça a mínima ideia de quem seja o Papa. O primeiro Papa de que me lembro foi de João XIII. Não propriamente dele, mas da sua morte, portanto já não era ele. Era coisa que os noticiários não calavam. Nunca esqueci esse facto, mas era mais velho que o meu neto é agora. Ele irá esquecer o acontecimento. Constou-me que Lisboa está uma animação. Francisco parece-me um desafiador de dragões, mas não estou certo de que seja um S. Jorge, apesar do nome civil. Os dragões são uns finórios dissimulados e fingem que as estocadas que caem sobre o seu corpo escamoso nada têm a ver com eles, convencidos de que possuem um poder de regeneração mais forte do que a ousadia daquele que conspira para os liquidar. Esperam que o Papa se torne, como este narrador, num cavaleiro da triste figura, um D. Quixote de que se rirão. Longe da capital, entrego-me à difícil tarefa de nada fazer. É preciso ser claro. Não me devoto ao lazer, nem ao ócio, tão pouco à preguiça ou sequer sofro de acédia. Obrigo-me à suspensão de fazer seja o que for. Nem praxis, nem poeisis. Isto é, nem me entrego a pôr em prática uma teoria ou ideia, nem a dar origem a qualquer coisa que antes não existia. Poder-se-á discutir qual dos vocábulos gregos - πρᾶξις ou ποίησις – é esteticamente mais agradável à vista. Por mim, prefiro a contenção da ποίησις. O ξ dá à πρᾶξις uma exuberância desnecessária. Imagino que o Csi (ξ) seja uma espécie de antena, talvez um antepassado do Bluetooth, que liga a teoria que está na mente à vontade que impele a materialidade do corpo a fazer qualquer coisa, que, por norma, não devia ser feita. Portanto, uma transferência de dados, o que me parece ultrapassar o decoro com que nos devemos pautar, pelo menos nos dias de Agosto, ainda mais quando somos visitados por um Papa que combate dragões. Mais logo, terei de fazer uma ronda pelos netos, para saber qual deles viu hoje o Papa. Talvez isto seja já um pecado contra a minha decisão de nada fazer. Por certo, se confessado, será perdoado.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Vida quotidiana

Por aqui, o Sol ainda não deu um ar da sua graça, remetido para lá da muralha de nuvens. Estas deixam coar uma luz esbranquiçada e indecisa, que o vento faz rodopiar, antes de a levar para outras paragens. Parece que há, no que escrevi, uma incongruência. Que eu saiba, o vento, com o seu passo arrastado, mesmo se sopra a muitos quilómetros por hora, não tem o condão de arrastar consigo as ondas-corpúsculos que constituem a luz. Ora, se eu escrevesse apenas coisas com congruência, o mais certo seria não escrever nada. O que me impede de imaginar os fotões a serem empurrados pelo vento? Hoje, após quase um mês calcei sapatos, sapatos a sério e fui com eles ver o mar. Estava orgulhoso de ter os pés calçados como deve ser e ser levado por eles desde o carro até à esplanada, como se tudo tivesse voltado à normalidade, o que é quase verdade. Durante a estadia na esplanada, chegou um grupo de jovens casais espanhóis, carregados com filhos pequenos. Elas foram tirar uma fotografia num barco que faz parte da decoração do estabelecimento, enquanto eles tomavam conta da criançada e lhe aprontavam a comida. Falavam num castelhano sem exuberância e apenas uma criança, ainda no carro de bebé, chorou. Depois, acabaram por se ir sentar fora do alcance da vista e fiquei sem história para contar. Tenho de suspender estas idas à esplanada, pois caio sempre na tentação de comer um pastel de nata, coisa que, com a minha idade, seria de bom tom evitar. Por volta do meio-dia, no retorno da tal malfada esplanada, as minhas netas ligaram. A mais nova estava eufórica, pois quando caminhavam não sei bem para onde, viram o Papa. Gritaram, elas e as amigas, e ele voltou-se para elas, certamente para perceber que barulho seria aquele. Um acontecimento, para contarem aos netos. Tenho de diminuir a verborreia.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Para canto

Fiz uma nova viagem de uma centena de quilómetros, mas agora a conduzir. Ao aproximar-me do destino, constatei a realidade do ditado da zona Oeste: Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Apanhei chuva na estrada, e à chegada esperava-me um céu cinzento carregado, embora sem chuva. A manhã correu-me bem. Só esperei cerca de vinte minutos pela consulta com o cirurgião. Quando entrei, abriu-se num sorriso. Já saiu o resultado da anatomia patológica, está tudo bem, anunciou. Com estas coisas, acrescentou, nunca se sabe. Eu não lhe disse que sabia que nunca se sabia, sabia-o até por deformação formativa, o que parece uma contradição. Aliás, tinha já notado, nas duas consultas anteriores, alguma ansiedade dele em relação ao resultado das análises dos materiais recolhidos. Respondi apenas que a espera pelos resultados é como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Ficou suspenso, depois disse: bom, essa espera é menor. Anuí. Ele ficou a pensar que sou um maluquinho da bola e eu fiquei a saber que ele não faz a mínima ideia de quem é Peter Handke ou Wim Wenders, ou a relação deles com a marca da grande penalidade. Isso, porém, não interessa. É um rapaz mais novo que os meus filhos, bem-disposto e que até acabou por me fazer o curativo no pé para me orientar o tratamento nos próximos dias. Eu, com as minhas referências pseudo-eruditas, é que pertenço a um mundo muito mais antigo e decadente, um mundo sem futuro, enquanto ele ainda tem um futuro diante de si. Quando saí do consultório, respirei fundo, embora não tenha sido o único. Esta foi desviada para canto, pensei.

domingo, 30 de julho de 2023

Ter

Um domingo de Verão é sempre uma tarefa difícil. Depois de almoço, tomado pela preguiça, adormeci. Se sonhei, não dei por isso, como é habitual, mas talvez o meu psiquismo seja dotado de um princípio de realidade que se impede a si próprio qualquer devaneio. Outra possibilidade é que a instância censuradora seja de tal modo poderosa que elimina o vestígio das coisas que fantasio ao dormir. Não tarda, terei de fazer uma viagem de uma centena de quilómetros. Ainda não conduzo, vou sentado ao lado, contemplando a estrada e os campos que a estrada atravessa. Não são verdes. Ressequidos, terão cor de palha. Tenho de me preparar e tenho pouco a dizer. É estranho o verbo ter, mas não tenho paciência para pensar sobre a sua estranheza, a sua inquietante estranheza.

sábado, 29 de julho de 2023

Mais livros da minha vida

Como estou sem assunto – coisa, aliás, recorrente – e como não me apetece falar do clima, retorno a um assunto abordado no outro dia, os livros da minha vida. A certa altura, os livros de aventuras no longínquo oeste norte-americano foram substituídos pelas aventuras da Enid Blyton. Talvez exista aqui uma imprecisão. É possível, muito possível, que tenham sido coevos. Contudo, não é essa fileira que me interessa aqui, mas uma outra que me acompanhou mais tempo, mesmo quando já lia coisas sérias, muito sérias, e pensava que era existencialista e que o absurdo dominava o mundo. Imagino que isso seria para fazer número. Essa fileira é a do romance policial. Contudo, não admirei apenas as forças do bem, os Holmes, os Poirot, as Marple, os Mason, os Wolfe, os Maigret. Todos estes tinham um génio orientado para tornar manifesto os maus que praticavam o mal. Confesso que gostava imenso do gentleman gatuno Arsène Lupin e do sociopata, mestre em disfarces, Fantômas. Apesar das horas passadas na sua companhia, nunca me senti impelido para os imitar. O mal que eles praticavam nunca me pareceu o bem. Há relativamente pouco tempo comprei e li dois ou três romances de Arsène Lupin, mas não tiveram qualquer impacto sobre mim, nem negativo, nem positivo. A certa altura da minha existência, ainda com relativa pouca idade, li algumas obras de Hermann Hesse. Na altura, fiquei fascinado, mas por volta dos trinta anos, quando tentei lê-los de novo, senti uma enorme estranheza por aquela literatura e perguntei-me como tinha conseguido ler aquilo. Talvez me devesse perguntar outra coisa: como consegui ser aquilo que era para gostar de ler aquilo. Contudo, essa pergunta poderia levar-me a um trabalho excessivo para encontrar uma resposta e fiquei pela primeira. Diante de mim tenho um romance de Maurice Leblanc, Arsène Lupin Joga e Perde. Será que o vou ler?

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Mistérios

Há mistérios indecifráveis. Não me refiro, claro, aos segredos que o Pentágono ocultará de naves e restos biológicos alienígenas, coisa que não terá qualquer mistério. Há pouco, ao abrir um livro, deparei-me com um bilhete de entrada numa casa-museu existente no Ribatejo, antiga propriedade de um importante republicano, filho de um acérrimo monárquico, coisa que acontece muitas vezes. É um bilhete curioso, pois tem o preço de entrada em escudos e em euros, o que me leva a presumir que terei feito a vista nesse tempo em que ainda não nos tínhamos esquecido dos escudos, mas que já só circulavam os euros, o que está de acordo com a minha memória. O mistério está nos números escritos a lápis no verso do bilhete. Reproduzo: 284-355; 357-385; 243-255; 125-153. Descobri que indicavam excertos específicos do livro. Até aqui não há mistério. Este surge quando considero aquela caligrafia. Aqueles números não foram escritos por mim. Ora, o livro em causa não foi adquirido em segunda mão e não me lembro de alguma vez o ter emprestado a alguém, até porque quem poderia interessar-se por ele também o terá. Quem terá escrito aqueles números? A caligrafia é marcadamente feminina, mas não conheço ninguém do sexo feminino que se interesse por aqueles temas, e as mulheres que se interessam por ele não me conhecem e, por isso, não me poderiam ter dado sugestões de leitura. Restam-me hipóteses metafísicas. Por exemplo, alguma mulher me enviou uma mensagem codificada, que eu terei guardado no livro, mas cujo código de decifração esqueci, assim como o envio da mensagem e a própria mulher. Outra hipótese é a da existência de anjos do sexo feminino. Uma delas, querendo que eu lesse aquelas páginas deixou-me a mensagem no interior do livro. Parece-me uma hipótese bastante plausível. Não consigo, porém, perceber qual o interesse desse anjo feminino em orientar-me na leitura de coisas tão terrestres. Vou ler aquelas páginas e talvez descubra a razão de a mensageira me ter deixado tal mensagem. Talvez o mistério não seja indecifrável, embora, lamentavelmente, eu não seja um Sherlock Holmes.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Falta de asas

Por aqui está um tempo estupendo. O céu coberto de nuvens, um ar fresco, mas não gélido, mesmo o vento quase frio sopra com sensatez. Nem sequer chove. Para um dia de Dezembro está mesmo muito bom. A perfeição não é coisa que faça parte da minha natureza, por isso sou inclinado ao egoísmo. Eu sei que os veraneantes se sentem deprimidos, alegam faltar-lhes sol, para que possam mergulhar no oceano e depois deitar-se na areia, mas com tantos lugares para uma pessoa se deitar, por que razão terá de ser na areia? Eu sou um banhista não praticante. Creio firmemente que a água do mar faz muito bem, que o iodo faz ainda melhor, mas a fé não me leva a pôr um pé na praia. Este ano estou ainda mais limitado, pois suspendi as longas caminhadas junto ao mar. Um défice na acumulação de pontos cardio que se aproxima da dívida pública. O pé, o meu pobre pé direito, continua em convalescença, com visitas semanais ao cirurgião e, com mais assiduidade, às salas de enfermagem, onde é submetido a esmerada atenção e a comentários que vou registando. Pois, dizem, é um sítio difícil, logo aí, ah, pois, de novo, vai demorar tempo a cicatrizar. Olhe, abriu um pouco. Olho, mas não vejo nada. Eu digo que sim e oiço: o melhor é evitar andar. Dá-me vontade de perguntar se tenho de voar, mas contenho-me. Esqueci-me de trazer as asas e se me dissessem para voar, sentir-me-ia vexado por não ter como fazê-lo. A memória já teve melhores dias, como é possível esquecer as asas em casa? Porque está um excelente dia de Inverno, vou almoçar na rua, sob um telheiro. Se chover, estarei protegido.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Os livros da minha vida

Os livros da minha vida. Esta frase esconde uma enorme presunção, a de que a minha vida tem alguma importância para nomear os livros que fizeram parte dela. Apesar disso, hoje dedico este episódio, pois estes textos não são mais do que episódios de uma história sem nexo e mal contada, aos livros da minha vida. São livros singelos, obras cujos autores desconheço, mas que me ocuparam longas tardes de Verão. As aventuras de Texas Jack, na revista Mundo de Aventuras, ou do Major Alvega, na revista O Falcão, as histórias que eram contadas no Condor ou no Ciclone, e aqueles romances do Oeste das colecções 6 Balas, Cow Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas colecções, ao contrário das referidas antes, revistas de banda desenhada, eram compostas por livros com dimensões minúsculas (8,5 cm x 12,5 cm) e letra que, nos dias de hoje, me seria indecifrável, mesmo com óculos. Tinham 64 páginas e seis delas eram preenchidas com desenhos alusivos à narrativa. Foram estes livros que me fizeram gostar de literatura. Talvez me tenham influenciado mais do que aquilo que eu imagino. A histórias, tanto quanto me recordo, tinham dois pólos. Um primeiro, em que uma injustiça introduzia a desordem numa comunidade, e um segundo, no qual o herói, um herói singular, restabelece a ordem e faz triunfar a justiça. Estes são os livros da minha vida, pois são os alicerces sobre os quais fui construindo outras leituras.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Mesmerização

Um azul cintilante brilhava para os meus olhos. A pequena ondulação abria nas águas rasgões por onde emergia um sangue branco e espumoso, que logo desaparecia. Não se avistavam barcos. Algumas pessoas, empequenecidas pela distância, entravam no mar na orla das praias. Não se ouvia os gritos dos veraneantes nem o rosnar estrepitoso das gaivotas. Vista da esplanada, a baía apresentava-se como uma realidade fantasiosa, a produção de um génio benigno. Não sei quantos minutos me absorvi na contemplação do quadro, até que uma notificação do telemóvel me trouxe para a realidade. O café esfriara e reparei que à minha volta havia pessoas, todas elas, pensei, mesmerizadas pela mesma paisagem. Talvez já ninguém use mesmerizar para falar de fenómenos de fascinação, mas haverá ainda quem dê crédito ao médico alemão Franz Anton Mesmer, morto há mais de 200 anos, e à sua teoria do magnetismo animal. Esta ideia de magnetismo animal, agora transformada em energia universal e com certo cariz sexual, ou pan-sexual, foi retomada, já no século XX por um dos ídolos da juventude contestatária dos anos sessenta e setenta do século passado, Wilhelm Reich, através da teoria do orgone. Este seria uma substância destituída de massa, presente em todo o lado, uma espécie de energia vital. Tanto quanto me lembro, pois entre as coisas sem sentido que li, os livros de Reich foram uma delas, o discípulo desavindo de Freud criou um dispositivo para acumular o orgone. Serviria para curar tudo e mais alguma coisa. Seja como for, apesar da perda de tempo da leitura, o orgone nunca me mesmerizou. Talvez por não ter magnetismo animal, coisa que poderia existir, esta manhã, na baía que me fez deixar arrefecer o café.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Lentidão

Um dia sem história, nenhuma acção valorosa para acrescentar à gesta que vou narrando. Nem todos os dias há oportunidade para se ser um Cid Campeador, ou, em caso de desespero, um Quixote ribatejano, pois isto do Ribatejo não é menos povoado de gigantes e outros seres maléficos do que as terras manchegas. A verdade é que não me faltou, neste dia, viagem por esse Ribatejo lezirioso, embora não me tenha abeirado do Vale de Santarém e, por isso, não me tenha deparado com a Joaninha e os seus olhos verdes. Sei, a fonte é segura, que seriam esses olhos que Camões cantou uns séculos antes de eles terem visto a luz nesta terra. Como se sabe, Camões, para além do dom poético, tinha também o de perscrutador de futuros. Ele pôs-se a perscrutar, a perscrutar, e zás: Verdes são os campos / De cor de limão: / Assim são os olhos / Do meu coração. Eram os olhos da Joaninha que, vindos do futuro, ofuscaram com a sua verdura o coração do poeta, que, ao que consta, se ofuscava com facilidade. Estou a desviar-me do assunto, a minha gesta gloriosa. Repito, nenhuma acção para me ilustrar. Se tivesse chegado ao Vale de Santarém, talvez ainda fosse a tempo de tomar parte na peleja entre liberais e miguelistas, uma peleja que começou no século XIX e ainda não acabou. Talvez, num dia destes, ainda vá a tempo de participar nela. Em Portugal, tudo é, felizmente, muito lento, e eu aprecio cada vez mais a lentidão.

domingo, 23 de julho de 2023

Uma força do Passado

Domingo de Verão. Um acaso – mas haverá acasos? – conduziu-me a um belíssimo poema de Pier Paolo Pasolini. No Youtube, oiço o poema na voz do poeta, mas a experiência é desagradável. Prefiro ser eu a soletrá-lo a meia-voz, num italiano que não sei vocalizar. O poema começa assim Io sono una forza del Passato. / Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do Passado / Só na tradição está o meu amor). O poema acaba por ser uma elegia por essa tradição, o que se manifesta logo no segundo verso. Só se ama aquilo que não se é. Ama-se a tradição porque já se está fora dela, ama-se uma reminiscência. Os três últimos versos confirmam o diagnóstico: E io, feto adulto, mi aggiro / più moderno di ogni moderno / a cercare fratelli che non sono più (E eu, feto adulto, vagueio / mais moderno que qualquer moderno / em busca de irmãos que já não existem). Há um terrível julgamento sobre a condição de ser moderno. Ser um feto adulto, isto é, ser alguém que envelheceu sem ultrapassar a condição fetal, alguém que continua como uma potência que nunca se consuma num acto, que nunca chega a ser um homem. Eu sou uma potência do passado, mas que nunca chego a ser aquilo que essa potência traz em si. Talvez os domingos de Verão sejam também eles uma potência que é incapaz de se tornar um acto, pois também eu trago comigo esse amor por uma tradição composta por inúmeros domingos estivais que desapareceram para sempre.

sábado, 22 de julho de 2023

Um ateísmo contumaz

Por aqui, Deo gratias, está uma manhã sombria. O Sol escondeu-se atrás das nuvens e, enquanto oiço murmurações contra a gestão do clima por estes lados, rejubilo. Talvez isto seja vergonhoso, talvez me falte empatia pelos seres adoradores de areia e sol, talvez seja um egoísta refastelado numa cadeira. A situação, porém, não será particularmente dramática. Os raios solares romperão a cortina nebulosa, os adeptos das orlas marítimas terão oportunidade de ir molhar o pé e eu estarei resguardado desse culto pagão. Por aqui, há um velho ditado que enuncia, sem pudor, primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Há na máxima acentuado exagero, mas terá alguma verdade. Talvez não se trate de uma máxima, mas de uma caricatura oral, com tudo o que as caricaturas têm de hiperbólico. As minhas netas estão por cá, o meu neto não tardará. Também não faltam cães, mas com esses a minha relação é de respeitosa distância, embora um ou outro insista em ser meu amigo. Explico-lhe que não fomos feitos para a amizade, mas eles não se comovem com a minha racionalidade e continuam a tentar estabelecer contacto. Uma vez por outra, cedo, mas não faço parte dos cultores dos animais de estimação. Nada tenho contra eles, claro, mas que sejam outros a praticarem a religião. Neste caso, sou ateu. Aliás, depois de a religião tradicional ter sido vítima da rasura dos costumes, surgiu um número incalculável de deuses, todos a exigirem fé inabalável e ritos abstrusos. Tento manter, perante todos eles, um ateísmo contumaz. Agora, alguém chama pelo meu nome. Posso fingir que não oiço, mas o mais sensato será ir ver o que se passa.