Certamente, por distracção minha, nunca tinha atribuído um
valor moral ao ordenamento das coisas mecânicas. Persisti nesta funda
ignorância até há pouco. Tendo o relógio decidido parar, apesar de a pilha, que
o animava nos trabalhos e dias que lhe competiam, ser relativamente nova. Não
me ocorreu que tivesse entrado em greve e dirigi-me a uma relojoaria. A senhora
que me atendeu quis alargar o âmbito dos meus conhecimentos e, apesar do meu
patente desinteresse pela causa da recusa do aparelho em funcionar, chamou o
relojoeiro. Todos os que estudaram filosofia sabem que um relojoeiro está mais
próximo de Deus que qualquer outro mortal. E foi aí que tive a percepção da
ordem moral que rege o mundo dos autómatos. Explicou-me ele que a acumulação de
impurezas no mecanismo conduz a que, para funcionar, este tenha de gastar mais
energia. Logo, as pilhas duram menos. Não quis pormenores sobre as impurezas,
bastou-me o desperdício. Traduzindo isto, aprendi que a impureza, seja ela o
que for, leva à dissipação e, se não se atalhar, pode conduzir mesmo à ruína e
morte do instrumento. Quando saía do estabelecimento, tive de me controlar e
não voltar atrás para perguntar se não seria sensato levar o relógio a um padre
confessor. O melhor é manter as aparências, pensei, e mergulhei no frio que a
noite, ao cair, trazia consigo.