Por vezes, aventuro-me na música erudita, digamos assim, de
tradições não ocidentais. A que mais me fascina é a japonesa. Hoje, porém, não
sei se devido à combinação do sol e das nuvens em tarde de sábado, ou se por
ter andado, há pouco, a observar as folhas avermelhadas pelo Outono das árvores
da avenida, acabei por escolher um raga indiano. Na raiz indo-europeia da
palavra raga está a ideia de colorir, descubro-o agora numa consulta na
internet. É a mesma raiz da palavra inglesa red e por certo da alemã rot ou da
francesa rouge. O raga, enquanto peça musical, pretende colorir a mente,
retirá-la da abstracção dos conceitos e fazê-la o centro da vida. A experiência
de escuta, contudo, não é, de início, a de uma explosão vital como, por
exemplo, na Sagração da Primavera de Stravinsky. Pelo contrário, o espírito
que escuta volta-se para si, concentra-se na sua solidão, abstrai-se da
exterioridade. É um espírito devocional. Só depois, de forma gradual mas
vagarosa, a música conduz à exteriorização, à manifestação no mundo, da vida
exuberante, e o corpo quase é movido pela vento que sopra da música. De súbito,
percebo que o sol deste sábado ou as folhas avermelhadas do Outono, também
eles, nascem desse espírito que sopra do raga que oiço. Lá fora, um vento
empurra as folhas e fá-las rodopiar, rodopiar, rodopiar e, entre mim e as
folhas que rodopiam há uma funda comunhão.