Há pessoas que têm uma estranha propensão. Escolhem fazer
coisas que sabem ir contra a sua natureza. Penso nisto enquanto oiço o Hilliard Ensemble
a interpretar música de Victoria e de Palestrina e me deixo arrastar,
literalmente, para o paraíso. Conheço alguém que estudou filosofia não porque
se interessasse por argumentos mas porque amava a literatura. Nunca lhe perguntei
a razão de tal comportamento, nem a pessoa esboçou alguma vez uma explicação
para a sua dissonância existencial. Fui anotando, contudo, ao longo dos anos, episódios
desse seu conflito. Um dia, após um concerto em Leiria, deste mesmo Hilliard
Ensemble, onde ouvimos música de Bach, disse-me que fazia mais pela fé um
concerto de Bach do que qualquer argumento sobre a existência de Deus. Objectei
que esses argumentos não pretendiam fomentar a fé mas determinar se é racional
ou não crer em Deus. Olhou-me divertido. A noite, ao contrário da de hoje,
estava amena. A Primavera era quase Verão. Passados alguns instantes,
respondeu, sem tirar os olhos do chão: a racionalidade ou a irracionalidade da
crença, o que tem isso a ver com Deus ou com a sua existência ou inexistência? Bach
sabia que Deus existia e a sua música é a prova disso, o resto... E não
completou a frase.