Faz um ror de anos que descobri que as letras dos livros
conspiravam contra mim. Letras que outrora me tinham em alta estima e se
apresentavam perfiladas na sua estatura normal, a partir de certa altura
deixaram de me levar a sério e começaram, com suspeita contumácia, a surgir
disfarçadas de anões. Não cheguei a ficar indignado, mas não gostei da
brincadeira. Não tinha inclinação para ser Branca de Neve, nem idade para ser
desconsiderado no respeito que qualquer letra deve a um ser racional. Pessoa
amiga, porém, olhou para mim, riu-se e acabou por me tranquilizar, dizendo que
o problema estava no meu envelhecimento. Não se coibiu de me fornecer, com detalhes,
a explicação científica, a qual, depois de aceite, acabei por esquecer. Disse
esquecer. E aqui está uma nova conspiração. A memória, que em tempos me fora
fiel, decidiu agora atraiçoar-me, talvez confiante na fraca visão, à minha
frente. Quando paro o carro ao pé de casa, vejo um vizinho solícito a dar-me as
boas tardes e a informar-me que me tinha esquecido das chaves de casa na fechadura
da caixa do correio. Reconstruí a cena. Coloquei a chave na fechadura, abri a
caixa, tirei o correio e aqui há um espaço em branco de algumas horas. Mil agradecimentos
e outros tantos obrigados e vou para casa almoçar. E fui jurando que iria ter
mais cuidado. E nestas juras e promessas lá se foi o tempo. Desci fui para o
carro. Estava lá, mas tinha-me esquecido de o fechar. Eu sei, eu sei. Há uma
explicação científica. Até para isto.