Numa conversa ficcionada, o psicanalista e escritor Irvin
Yalom faz dizer ao dr. Breuer, em resposta a uma pergunta do dr. Freud, que
teve “católicos como pacientes que, embora agnósticos, praticavam a confissão”.
E isso, a confissão, fez-me lembrar o crepúsculo que cai sobre a cidade, esse
momento que ainda buscamos uma réstia de luz antes que a noite chegue. Talvez a
prática da confissão – mesmo por agnósticos ou até por ateus – seja isso, uma
necessidade de agarrar a pouca luz que se tem, não deixar que a noite venha e
tudo se torne turvo, como as ruas que vejo, agora que o sol se pôs e todos os gatos
são pardos.
domingo, 30 de setembro de 2018
sábado, 29 de setembro de 2018
Memória
Por vezes, caminho dentro do meu esquecimento. Uma rua onde
não passo há décadas, pessoas que morreram até na minha memória, um dia de
tempestade quando era pequeno, o som que vinha do rádio em casa dos meus pais,
o vento que erguia turbilhões de poeira no pátio da escola. E assim que vou
desbravando essas estranhas avenidas esqueço-me do lugar onde estou, daquilo
que faço, de quem sou. Então oiço um cântico de alegria, mas logo a memória, com
a sua rudeza canalha, atira-me para o presente, empurrando-me para o fundo da
minha própria pele. Talvez sobreviva, penso e calo-me a olhar o horizonte.
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
O castelo
Quando passei na avenida, o castelo espiava a vida cá em
baixo com uma indiferença feita de pedras e anos, um rosto sem ademanes nem
trejeitos, talvez com uma ou outra ruga de comiseração. Terá razão, pensei. Já
viu muitas coisas e há-de pensar que aquilo que nos ocupa e faz ferver de
indignação ou de entusiasmo não passa de poeira, e o pó logo há-de assentar sob
a copa dos castanheiros, sem que alguém se lembre dele. E isso deu-me uma
estranha alegria e a certeza da irrelevância daquilo que me invade os dias ou a
insignificância da minha própria existência. Não há como um velho castelo para
nos devolver à poeira da realidade. Ri-me, grato, e continuei o caminho.
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
O dia que se esconde
Entardece. O dia, exausto e dorido, desliza pelos corpos e
procura a terra onde se esconderá no seio da noite. Foi isto que pensei,
enquanto olhava para um jacarandá em frente da janela e procurava, entre folhagem
e cápsulas secas, descobrir frutos ainda verdes. E enquanto o tempo escorria,
entregava-me a uma contagem silenciosa. Depois, esquecido da aritmética, saí de
onde estava, passei por gente arqueada pelo calor e entrei no carro. Vi um
cachorro de língua de fora, depois por um bando de escolares presos na
exuberância da adolescência, subi um viaduto e entreguei-me ao rally das rotundas. O pensamento sobre o
dia que se esconde na noite voltou-me e eu sorri com a inutilidade das coisas
que me ocupam o espírito. Pudesse eu ter grandes pensamentos, mas só os
pequenos nadas e as grandes inutilidade parecem encontrar casa em mim.
quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Silêncio digital
Muito sofrida deve ser a vida de pessoas que, perante aquilo
que as desgosta, desatam de imediato a insultar meio mundo. Então nas redes
sociais a injúria está à distância de uns movimentos dos dedos. Uma contrariedade
na pequenina ideologia que habita aquelas cabeças e logo salta um chorrilho de
impropérios, uma mão cheia de ofensas, uma incapacidade de conter as emoções no
foro estrito da privacidade. Talvez a vida seja negra e uma necessidade de
gritar razões faça bem ao fígado, talvez. O mundo, porém, seria um lugar melhor
se esta gente calasse os dedos. O silêncio digital como caminho para uma vida
civilizada.
terça-feira, 25 de setembro de 2018
Europeu
Hoje de manhã, ao passar pela avenida, observei os
castanheiros. As folhas começam a amarelecer. Isso poderia ser um bom sinal,
mas não. Olhei para o céu e o sol brilhava raivoso, atiçado por algum deus
vindicativo. Lá anda o Outono disfarçado de Verão, pensei. Na sala de aula, as
temperaturas eram de tal modo elevadas que, desde o primeiro instante, perdi a
esperança de que alguma coisa conseguisse mover os neurónios de quem quer que
seja. Exultei, todavia, com o facto de termos um horário escolar como se
vivêssemos no centro da Europa. Não há nada como ser europeu, disse para comigo,
enquanto insistia em coisas tão interessantes como conceitos e proposições,
teses e argumentos. Os alunos abanavam-se, bebiam água e olhavam para mim com
um olhar de quem pede misericórdia. Resisti à manobra. Um europeu que se preza
não tem calor em Setembro.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Palavras
Oiço vozes lá em baixo e, mais ao longe, ergue-se a gritaria
vinda de uma escola em tempo de intervalo. A inclemência do sol não chega para
tapar as bocas e reduzi-las à sombra do silêncio. Talvez seja esse o problema
da humanidade, a impossibilidade de manter a boca calada. Esse silêncio que
nunca chega aumentaria o valor das palavras, pois haveria um excesso de procura
para a escassez da oferta. Mas não, nunca conseguimos cerrar os dentes
devidamente. Com a produção sem freio que limite o desastre das vocalizações, nem
dadas queremos as palavras dos outros. Para ruído, e não pequeno, bastam as
nossas.
domingo, 23 de setembro de 2018
Começou o Outono
Ainda não me atrevi a pôr um pé fora de casa. O Outono, a
minha estação preferida, chegou rancoroso, pedras de sol na mão, facas afiadas
prontas a entrar pelas costas dos mais descuidados. Noutros tempos, pelo menos
aqueles que guardei na memória, a chegada do Outono, mesmo se havia sol e
calor, era acompanhada por um sentimento de despedida. Alguma coisa estava a
acabar. O que é tormentoso não é o calor, mas chegar ao dia de hoje e
pressentir que tudo vai continuar. Um sol inclemente, as temperaturas bem acima
dos 30 graus, os incêndios a crescer dentro das florestas, o cansaço dos corpos
batidos pelo desvario solar. Chego à janela e espreito a avenida. Os prédios amolecem, as paredes exsudam, as árvores ajoelham-se à procura de água fresca.
Depois, sento-me com um romance de Cormac McCarthy na mão. Olho a capa e vejo nela
uma paisagem de Outono. Atiro-o para cima da secretária e, como um cão exausto,
rosno: estou farto de provocações.
sábado, 22 de setembro de 2018
Uma justiça infalível
Há pouco tive de ir à farmácia. Manter a tensão arterial
dentro de valores aceitáveis é um exercício de minúcia e persistência, um
compromisso entre um ritual religioso e a fé na ciência, pensei ao dirigir-me
ao balcão. Uma rapariga de bata branca atendeu-me com bonomia, talvez com a condescendência
de quem ainda não tem idade perante aqueles cuja idade se mede pelo número de
medicamentos que toma. Também eu já pertenci ao grupo dos sem idade, disse para
comigo, e talvez houvesse em mim condescendência para aqueles que a tinham,
talvez. Na rua, ao caminhar sob a sombra que as árvores projectavam no passeio,
constatei que havia no mundo uma justiça infalível, enquanto me dirigia para
casa com o colírio que me há-de pôr em ordem as fantasias exaltadas do sangue.
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Depois de almoço
Podia desculpar-me com o calor afrontoso que persiste em
colonizar este sítio onde me cabe viver. Seria faltar à verdade. A realidade é
que as coisas que me interessam talvez
não me interessem assim tanto. Se num daqueles dias, como o de hoje, posso
sentar-me, depois de almoço, em frente ao computador para ver ou fazer alguma
coisa que me interesse, o certo é que, passados alguns minutos, adormeço. Não
se pense que é por falta de frugalidade na refeição, não é. As coisas começam a
desvanecer-se, os olhos a arder, as pálpebras a cerrarem-se. Então, a cabeça
descai, o queixo choca com o peito e ali fico até que a dor no pescoço se torna
insuportável e acorde, a praguejar com a idade, o mundo e a sua falta de
interesse. Só me falta ressonar, pensei há pouco. Uma voz vinda de outro lado,
como se me lesse o pensamento, tira-me as ilusões. Tens estado a ressonar. Não
ouvi nada, respondo não sem ponta de azedume.
quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Exuberância
Oiço uma voz animada, dentro de
um grupo, no outro lado da rua. Não entendo o que diz, mas não lhe falta
entusiasmo. Os meus olhos saltam da sombra das árvores a crescer do chão para
os gestos de uma das mulheres. O homem, silencioso, parece atento. Talvez já
esteja habituado à exuberância e esteja a fingir que não está a li. Os carros parecem
vermes perdidos na crueza do alcatrão. Uma carrinha, vagarosa, pára e interpõe-se
entre mim e o grupo. Penso que vou perder alguma coisa essencial, mas logo a paisagem
fica desimpedida. Consigo perceber a tonalidade dramática da voz, mas não as
palavras. A outra mulher, por vezes interrompe, mas logo a sua voz morre
afogada no mar exaltado do discurso da primeira. A vida é assim, pensei. Cheia
de dramas e narrativas exuberantes para acrescentar dor aonde ela não existe. O
homem tira as mãos do bolso, diz qualquer coisa e afasta-se. A mulher cala-se,
enquanto as sombras saltam para dentro da minha escuridão. A cidade parece
imutável.
quarta-feira, 19 de setembro de 2018
Resignação
O calor desliza das paredes, ergue-se em direcção ao tecto e
cai sobre as cabeças com um estrondo feito de silêncios, cansaço e um triste
aborrecimento. Começaram as aulas e o país descansa. Os pais podem retomar as
suas vidas interrompidas por essa estranha intromissão que a presença dos filhos em
férias sempre provoca. Eu cumpro com zelo as minhas funções. Falo sobre
conceitos, problemas, teses e argumentos. Proponho exercícios e eles abanam-se,
suspiram, mexem-se nas cadeiras, torcem os dedos e olham-me resignados, como se
soubessem que estão perante uma inevitabilidade. Olho para a rua. Ao longe, a
pedra baça do castelo reverbera sob o chicote da luz solar. Quando a campainha estilhaçou
o silêncio, ao vê-los abatidos pelo calor e submetidos à canga das mochilas, pensei que a resignação é a pedra angular da escola neste pobre país.
terça-feira, 18 de setembro de 2018
Os loucos
Há lugares onde se enlouquece rapidamente ou então que
atraem os que, apesar de não o parecerem, são já loucos. Esses sítios, mais que
um céu nublado e escuro que ofusca a luz, são buracos negros que a tudo devoram.
Os que habitam ali, tenham enlouquecido depois de entrar ou chegado já loucos, trazem
no coração o desejo ardente de espalhar a sua loucura por todo o lado que está
sob o seu império. E como eles gostam de imperativos, como odeiam o que é
diferente, qualquer alternativa à mania que os consome, qualquer vislumbre de
sensatez. Num primeiro momento, ainda ocultam do público a doença, mas logo o
entusiasmo próprio dos maníacos cresce e se abate como uma guilhotina sobre
todos os que pensam. Decapitar, decapitar! Eis a palavra de ordem dos déspotas
da insanidade. E a loucura vai-se expandindo, toma por dentro as instituições,
as pessoas, a réstia de luz que bruxuleia ao longe. Os loucos, possuídos por um
demónio contumaz, não dormem e quanto mais enlouquecem os outros, mais ávido é
o seu desejo por mais e mais demência. Inesgotável é o apetite que os consome.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
De janelas abertas
Abri as janelas para que o ar da manhã refrescasse a casa.
Lá fora, as árvores pareciam petrificadas, sem que uma brisa lhes movesse as
folhas. Em vez de ar fresco, entrou uma mosca e a textura do dia com as suas
garras de luz e calor. Dois pombos voaram de um telhado para o outro, enquanto o
tilintar abrupto de garrafas anuncia que o despejo do vidrão da esquina. Agora,
algumas nuvens escondem o sol e em tudo isto não há glória nem grandeza, apenas
o ronronar monótono da vida sobre o alcatrão do tempo.
domingo, 16 de setembro de 2018
Tarde de domingo
A tarde corre sorrateira, enquanto as pessoas, submetidas ao
império do calor, ruminam vagarosamente o resto de domingo. Amanhã, a vida
espera-as com uma faca afiada, pronta para ser cravada nas costas dos mais incautos.
Não fará sangue, mas não faltarão dores em corações trespassados. Afasto estes
pensamentos, e concentro-me no medrar das sombras. Desprendem-se dos prédios,
das árvores, de qualquer paliçada que separe um território de outro. Algumas
pessoas passam. Vão vagarosas, como se estivessem a chegar de uma longa
jornada. Uma mulher ajeita o cabelo, um cão alça a perna junto ao tronco de uma
árvore e a vida desliza. Ao longe, o ronco de uma moto. Ténue, mas logo aumenta
dentro dos meus ouvidos, como se o grande desígnio fosse ensurdecer-me. A
cidade murmura irritadiça. Em segredo, o poente adolesce, anunciando
uma trégua passageira.
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
Tiranias
O único bem que um ser humano dispõe é o tempo, essa duração
cujo segredo os deuses nunca revelam, ponderei ao sair de casa. A manhã estava
fresca e permitia que o cérebro se dedicasse a pensar, exercício que deveria
distinguir a nossa das outras espécies. Enquanto ia meditando, olhava para as
pessoas. Apressadas, quase corriam, como se temessem não a falta de tempo mas o
calor que, lá mais para o fim da manhã, haveria de irromper para esmagar o
cérebro e o coração de cada um. E enquanto deixava o carro deslizar, o
pensamento fluía como as águas de um rio, por vezes sobressaltava-se, outras
era tomado pela certeza. E assim caminhava, entre dúvidas e convicções, para a
foz, esse momento em que alguma coisa se revela. Não há maior tirania do que
dispor do tempo dos outros a seu bel-prazer, murmurei entre dentes. Pobre país
este em que o prazer maior está em roubar o tempo dos que não se podem
defender. No semáforo, um carro travou mal caiu o amarelo. Quase ia batendo e,
nessa preocupação, tudo se dissolveu. Talvez o pensamento não seja uma vantagem
competitiva, talvez não.
quarta-feira, 12 de setembro de 2018
O que aprender
Agora que o exercício pleno das minhas funções se aproxima,
pergunto-me, enquanto vou cidade fora sob a inclemência do calor, o que seria
mais importante ensinar. E aquilo que desliza pelo meu pensamento, enquanto a
vista percorre a avenida, é simples. A primeira coisa que os seres humanos deveriam
aprender seria não ter expectativas acerca de alguém ou de alguma coisa. A
segunda, a do exercício contínuo do esquecimento da própria possibilidade de se
esperar. Assim, ficariam livres para contar apenas com os seus parcos recursos.
Então, tudo o que lhes adviesse, sem que o esperassem, aceitá-lo-iam como uma
dádiva que se agradece e retribui. Cheguei, paro o carro e saio para o sol. A
escola verga-se sob a aspereza de um calor fugido dos infernos. E o que pensei
há momentos desvanece-se já, como se a verdade apenas pudesse viver no silêncio
do esquecimento.
domingo, 9 de setembro de 2018
Setembro
Fui há pouco à rua e o domingo pareceu-me soturno. Talvez
fosse eu que estivesse soturno, com a despedida das netas, depois de uma semana
animada pelo frenesim da sua presença. Setembro é um mês difícil, pensei. Há
nele sempre uma fonte de desilusão. Quando chega, o corpo saúda-o como um
salvador, mas também o corpo se precipita e vive equivocado. Há pessoas que sonham
outonos eternos, uma temperatura suave, as primeira chuvas, a queda das folhas,
uma melancolia aprazível que fosse uma entrada para o jardim do Éden. Este,
porém, está guardado por querubins de espada flamejante e Setembro é um
repositório de traições. Esconde, no seu íntimo, um punhal terrível que, na
primeira oportunidade, há-de cravar nas costas dos mais avisados. Encolho os
ombros e regresso a casa, pisando calmamente as pedras da calçada, enquanto
observo o recorte das sombras que os prédios projectam no meu caminho. Amanhã
será outro dia, murmurei para comigo. E a banalidade da frase reconciliou-me
com este domingo sem futuro.
sábado, 8 de setembro de 2018
Xadrez e sexo
Há pouco fiquei perplexo ao ler que em Tallinn, Estónia, é
proibido jogar Xadrez durante o sexo. Não pense o leitor que a minha
perplexidade se deve a um acesso de incredulidade que me tenha levado a duvidar
da notícia. Embora não a tenha ido confirmar, estou certo que não faz parte das
célebres fake news que tanto
atormentam certas personagens pouco dadas ao Xadrez. A perplexidade também não nasce de achar bizarros os legisladores
estonianos. Se na Escócia não é permitido conduzir vacas bêbado e em Portugal
não se pode urinar no Oceano Atlântico (o que acho muito bem), então também é plausível
que, numa parte do báltico, não se possa mover o peão enquanto a rainha está a
arfar. Tudo isto é natural e, para qualquer pessoa sensata, bastante óbvio.
O que me deixa perplexo é antes de tudo a magna questão de
saber se à relação entre fazer sexo e jogar Xadrez se aplica, ou não, a
propriedade da comutatividade. Portanto, a minha perplexidade é do âmbito das
matemáticas e não da inverosimilhança da notícia. Será que, neste caso, a ordem
dos factores também não altera o produto? Traduza-se: será a mesma coisa jogar
Xadrez enquanto se faz sexo e fazer sexo enquanto se joga Xadrez? No círculo
dos meus amigos e conhecidos, há quem defenda, e não são poucos, que neste caso
a ordem dos factores não altera o resultado. Tanto faz jogar Xadrez durante o
acto sexual como praticar sexo enquanto, calma e pensadamente, se disputa uma
partida. Se se estiver em Tallinn, o resultado é cometer um crime e,
eventualmente, ser punido pelo duro braço da lei.
Por mim, depois de muito meditar, inclinei-me para a
inexistência de comutatividade no presente caso. Uma coisa é jogar Xadrez
enquanto se faz sexo e outra, muito diferente, é fazer sexo enquanto se joga
Xadrez. Neste caso, não há prejuízo de terceiros. O adversário pode até
beneficiar do seu oponente estar centrado na vexata quaestio do orgasmo e não ser capaz de perceber que o peão
está a preparar-se para comer a Rainha. Eu sei que os peões não devem comer rainhas,
mas a vida é o que é, e a nobreza já não é o que era. Estou em crer que nem os
estonianos seriam capazes de achar isto um crime. Uma coisa bem diferente,
há-de o leitor convir, é estar, depois de passada a provação dos preliminares,
em pleno amplexo amoroso, entre gemidos, sussurros, gritos e murmúrios, com a
tensão a crescer, o desejo a transbordar, a sua parceira ou parceiro a entregar-se a um violento orgasmo e você, ao mover a torre para a casa h8, exclamar não sem uma ponta de cinismo: Xeque-mate! Só
pode dar cadeira.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Ser estrangeiro
Quase no início do seu livro sobre Constantinopla, Théophile Gautier assevera que “para se viajar num
país é preciso ser-se estrangeiro: é a comparação das diferenças que produz as
observações”. Será também isso válido para as cidades? Como poderei observar a
cidade – o castelo, a praça 5 de Outubro, a avenida marginal, as águas do
Almonda, o velho casario – já que não sou estrangeiro? Talvez Gautier, quando publicou
o seu livro, não tivesse ainda idade suficiente para perceber uma outra coisa,
para compreender que “o passado é um país estrangeiro: lá, fazem as coisas de modo
diferente” (Leslie P. Hartley, Go-Between).
E é assim, por ser alguém mais do passado do que do presente, que me sinto
estrangeiro na minha própria cidade, caminho por ela e as observações nascem da
comparação entre essas duas pátrias que o tempo afasta irremediavelmente uma da
outra. A avenida, com os seus castanheiros e o jardim a bordejar o rio, já não
é a mesma avenida, nem a Praça que há pouco vi é a mesma praça que frequentei
há muitos anos. Vim desse passado, onde as coisas se faziam do modo diferente,
e por isso sou cada vez mais um estrangeiro. É só uma questão de tempo para que
qualquer um se torne estrangeiro na sua própria terra.
quinta-feira, 6 de setembro de 2018
As lentes Mercedes
Um oftalmologista desavisado decidiu
receitar-me óculos com lentes progressivas e assim substituir os três pares de
óculos que compunham a minha colecção. Uns para ler, outros para o computador e
outros ainda para ver ao longe. Ainda argumentei que, provavelmente, não me
iria dar bem com a progressividade – ou o progressismo – das lentes, mas ele
insistiu, perorou sobre as manobras que tinha de fazer para gerir tantos
óculos, e eu cedi. Vendo-me vencido acrescentou que tinham de ser umas lentes
de uma certa marca especial e não dessas que saem mais em conta. Deu uma
explicação técnica que me soou como se fosse chinês. Vendo o meu ar incrédulo
ou estúpido, disse-me: olhe, é como comparar um Mercedes com um Renault 5. Num
Renault 5 também vai a Lisboa, mas não é a mesma coisa. Pois não, assenti,
entre divertido e ingénuo, imaginando-me já a conduzir umas lentes topo de gama.
E lá comprei os óculos com lentes tipo Mercedes. O resultado nunca deixa de me
espantar. Se quero ler, deixo o Mercedes na garagem e vou num velho Renault 5, de
lentes riscadas e que só serve para ver ao pé. O pior, porém, não é isso. Há
pouco decidi ir de lentes Mercedes à rua e pensei que tinha enlouquecido. O que
era uma rua normal, agora parecia-me estar cheia de crateras. Ao avançar, via
um grande desnível, calibrava o pé para esse desnível, mas não havia cratera
nenhuma e o passo saía em falso. Por duas vezes ia caindo, enquanto tentava
andar sem espreitar para o chão. Ao fim de cinco minutos, decidi que o melhor
era pôr os óculos de lentes Mercedes de lado e andar mesmo a pé. A viagem é
mais segura e Torres Novas deixou de me parecer uma cidade da Síria após um
bombardeamento.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
As horas
Hoje, ao atravessar a cidade, senti-me perplexo, como se, de
um momento para o outro, me tivesse perdido em ruas que percorri vezes sem
conta. Quando, passados instantes, recuperei o sentido de orientação, não
deixei de me interrogar sobre a razão desta súbita incongruência. As coisas
aqui quase não mudam e quando o fazem é porque se tornam decrépitas. Deixa-se o
tempo marchar sorrateiro sobre as casas e estas, lentamente, começam a
desfazer-se, sem que ninguém dê por isso. Então, tudo se torna tão irreal que,
mesmo o mais sólido dos seres humanos, não resiste e se perde no poço fundo
daquilo que conhece, esse abismo onde a memória se esfarela e se entrega a
corrupção trazida pelas horas, essas deusas vingativas que não largam os homens
e as suas pequenas obras.
terça-feira, 4 de setembro de 2018
Visco
O dia está viscoso, concedi, ao sentir o ar da rua tocar-me
a pele. De imediato se formou uma associação. Esse visco que adere aos corpos é
uma armadilha para capturar que tipo de aves? Será que ainda se sabe que se
utilizava visco para apanhar pequenos pássaros, os quais, de pés colados à
mistela, se entregavam não sem resignação ao destino? Não é que eu o tenha
feito, pois nunca fui dado à ornitologia ou mesmo a qualquer interesse pelo
mundo dos animais, mas havia quem se entretivesse a capturar, com esse ardil de
passarinheiro, pequenas aves. O destino destas nunca o soube. Uma coisa sensata
a de evitar excesso de informação sobre coisas que não nos dizem respeito. E,
perdido nestes pensamento, fui-me encaminhando para uma superfície comercial,
uma daquelas que enxameiam a cidade, cruzando-me com gente desconhecida, o que
me levou à constatação de que são cada vez menos as pessoas que conheço. Entrei
por uma daquelas portas que, guiada por um olho inexorável nascido do cérebro
de um bisneto de Bentham, abrem automaticamente. Fui apanhado pelo visco.
Afinal, o pássaro a capturar era eu, pensei não sem resignada condescendência
para com o meu destino.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
A realidade
Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas
me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos,
passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os
peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da
meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que
me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um
mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o
enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há
muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E
ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja
e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão.
Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o
cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por
mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.
domingo, 2 de setembro de 2018
Um progresso
Felizes são os domingos que esquecemos que o são. Surgem
como uma manhã fresca, absortos e anónimos, para declinarem na preguiça das
horas. A segunda-feira será ainda uma espécie de limbo até que, cansado de
benevolência, o deus abrirá as portas do inferno. Outrora, as pessoas
endomingavam-se. Iam à missa, as que iam, algumas ao futebol ou ao cinema. Era
um tempo severo e as possibilidades de distracção, parcas. Quem viveu esses
tempos, percorre as ruas da antiga vila e imagina que, naqueles dias, era
feliz. Talvez fosse, talvez não. Muitas vezes confundimos a felicidade com a
escassez de anos, ou imaginamos que uma bravata juvenil é um feito só possível
naqueles tempos heróicos, que não voltarão. A passagem dos anos favorece a
tendência para a mitologia, torna até o mais insípido dos homens num mestre
contista, mas a realidade, com o peso do calcário, não deixa de aflorar aos
nossos olhos e de recordar que uma ilusão, por amável que pareça, não deixa
de ser uma ilusão. Seja como for, o facto de os homens se endomingarem menos
não deixa de ser um progresso moral da humanidade.
sábado, 1 de setembro de 2018
Dias assim
Passa pouco do meio-dia e lá fora estão 36o. A
temperatura há-de trepar até aos 40o, vejo anunciado num dos sites
que se tornou, para mim, de leitura obrigatória, o da meteorologia. Setembro,
esse mês em que cheguei aturdido ao mundo, apresentou-se sem máscara nem
misericórdia. Faço figas, penso coisas impróprias, ergo barricadas dentro de
casa, reduzo a luz exterior e só deixo que o mundo entre através do som. É um
universo de rumores, o ronronar dos carros ao longe, algum grito extraviado na
rua, o latido fraco de um cão exausto. Fecho os olhos e vejo o vapor a
evolar-se do alcatrão das ruas. Hoje proíbo-me a visita às janelas e tenho de
inventar aquilo que vejo. Conto as horas para que chegue a noite. Dias assim
são como uma doença. Há que esperar que passem.
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