segunda-feira, 3 de setembro de 2018

A realidade


Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos, passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão. Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.