Desenho espirais no tampo da secretária. Fixo um dedo num
ponto do vidro, julgo que os geómetras lhe chamam pólo, e depois traçando
curvas cada vez mais amplas vejo-o afastar-se desse centro onde tudo começou.
Parece uma alegoria aos dias de hoje, mas não era essa a intenção. Quando paro
o exercício circular, os meus olhos não detectam vestígio da actividade, e essa
é outra alegoria. Faça o que fizer, daqui a um tempo ninguém encontrará sinal
ou pista que conduza ao que fiz, ao que fui, ao que desejei. Não lamento que
seja assim e será mesmo uma boa razão para ficar grato com a ordem do mundo e a
natureza das coisas. A tarde desliza nimbada por uma luz esquiva, sorrateira,
que dardeja a terra a medo, como se também ela temesse a contaminação.
Cresceram muito as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado, erguem-se
para os céus, mas não rogam por nós, ou será que o fazem e nós não sabemos
escutar? Abri a porta da varanda e entrou uma mosca. Parece perdida, voando
para aqui e para ali, como se a sua bússola se tivesse desregulado. Hoje estou
com uma forte inclinação para o discurso alegórico. Melhor era o tempo em que
as hipérboles me ocupavam o espírito e desse modo me entregava a discursos
fantasiosos, onde o exagero expandia os textos para ocultar o grande vazio que
há em mim. Estou mais contido. Hoje participei em duas reuniões virtuais e
ainda me espera uma terceira. Sou para mim mesmo uma imagem virtual, uma
fotografia de passe inquieta no canto de um computador. Mal frequento a
televisão, como é hábito, e sou frugal nas notícias, há que evitar a realidade.
Hoje é sexta-feira, dia 27 de Março. Vou a uma dessas aplicações que
virtualizam o mundo e imploro, como se distribuísse imperativos, um vídeo do
meu neto. Vou desenhar mais espirais.
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