segunda-feira, 30 de março de 2020

O verdadeiro nome

Recebo dois vídeos no telemóvel. O meu neto, do alto dos dezasseis meses, exibe-se para um público restrito ampliado pela câmara de telemóvel. Faz grandes discursos, mas fala numa língua que deixei de perceber há muitas décadas. Quem sabe se os discurso que fiz nos meus dezasseis meses não foram os mais sensatos e profundos de toda a minha vida. Talvez nesse tempo designasse as coisas pelo verdadeiro nome delas e que, com a aprendizagem da língua, começasse a falhar irremediavelmente a nomeação do mundo. Hoje levantei-me cedo. O dia nascia enfastiado e assim foi crescendo. Agora que atingiu a maioridade não apresenta melhoras. Progride com tédio, faz umas caretas de nojo, suspira maçado. Tento entabular conversa com ele, mas ignora-me e prossegue o seu caminho tomado pela náusea e má educação. Um existencialista da rive gauche. Oiço um bater de asas e volto-me. É um pombo. Nos campos ao longe avisto ciprestes. Distribuem-se ao acaso. Dizem que são memórias que ficaram de umas escaramuças havidas por aqui aquando das invasões francesas. Chegam a durar mil anos, descubro em pesquisa rápida. Consola-me a existência destes seres que ultrapassam a medida humana, sem que ostentem sobranceria  nem sejam dados a chamar a atenção para si. Crescem em silêncio e contenção. Espera-me mais uma vídeo-reunião. Colecciono-as e não tarda serei especialista. Hoje é segunda-feira, dia trinta de Março. O mundo encolhe, enquanto os meus olhos se esforçam por alargar o horizonte. Começo a ficar cansado de conviver comigo.

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