Da praceta aqui ao pé de casa vem o som da campainha de uma
bicicleta. Levanto-me e vou espreitar. Uma adolescente pela idade das minhas
netas passeia-se. Estava combinado que elas estariam cá pela Páscoa e haveriam
de ir para ali andar de bicicleta, como acontece quase sempre. Agora estão
confinadas muito longe daqui, mas a lonjura tornou-se risível. O meu neto está
a dois minutos de carro e também está tão longe quanto elas. Assistimos a uma
lenta dissolução do espaço. Há pontos, mas não segmentos de rectas ou curvas que
os unam. Deveria evitar referências à geometria, aconselho-me. Não há
distâncias que possam ser percorridas num determinado tempo. A suspensão do
espaço e das trajectórias lança-nos para um mundo onde a única coisa que conta é
o deslizar contínuo da areia na ampulheta. Os gregos tinham relógios de água, clepsidras
que mediam o tempo pelo escoar da água. O termo teve um feliz destino na poesia
portuguesa. Dá nome à recolha de poemas de Camilo Pessanha. Muito mais tarde,
João Miguel Fernandes Jorge intitula O Roubador
de Água um dos seus livros de poesia. E será isso o que uma clepsidra é, um
roubador de água, ou de tempo, ou de vida. A suspensão do espaço talvez pudesse
alimentar um romance distópico, onde cada um estivesse afastado dos outros por
um abismo inultrapassável, enquanto uma gigantesca clepsidra deixava escoar,
com lentidão inusitada, a água. Rio-me da falta de imaginação. Oiço uma buzina
e o rumorejar dos carros ao longe. O som de um aspirador sai pela janela de um apartamento
contíguo e entra pela minha. Devia fechá-la. Hoje é terça-feira, dia 24 de
Março. Os pássaros cantam, enquanto eu descubro um erro de ortografia no texto
e apresso-me a emendá-lo. Sem espaço, mas com a ortografia correcta.
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