A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao
banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas,
entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala,
sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava
já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de
esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e
consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir.
Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de
esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de
ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha
esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório,
sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz
mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve
quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me
atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde
não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera,
como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o
mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me,
imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e
lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida
passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede
desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse,
respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu
escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou
consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a
Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a
descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas
do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa
galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar
medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese
disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se
fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa
do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e
uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.
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