sexta-feira, 13 de março de 2020

Um pássaro canta

No correio havia duas cartas. Pego nelas, olho-as de soslaio e não consigo reprimir um momento de suspeição. Há em nós comportamentos muito arcaicos vindos daqueles tempos em que ainda não tínhamos estabelecido um cordão sanitário eficaz em torno das comunidades humanas para as proteger dos predadores e da própria natureza. Estabelecido este, esses comportamentos foram recorrentemente avivados ora com a guerra ora com a epidemia. Voltam a manifestar-se. Está uma tarde soturna e caminha-se para a Páscoa como se estivéssemos efectivamente na Quaresma. Os lugares estão mais vazios, o bulício das ruas baixou de intensidade e na face das pessoas há um esgar de preocupação. São imensas as coisas por fazer, mas a vontade está avara. Nada corrói mais o querer do que a suspeita e esta tornou-se, também ela, pandémica, uma reacção psicológica à ameaça. Em ambientes destes surgem todas as teorias marcadas pelo terror e a própria razoabilidade vai sendo escavada até que derrui. Nos telhados em volta, não vejo nenhum dos anjos que lá costuma parar. Talvez tenham partido em serviço, talvez tenham ido a um congresso angélico discutir o que fazer connosco, talvez tenham sido chamados pelo Criador para escutar ordens e receber recomendações. Na escola ao lado ainda há bolas a rolar, rapazes a correr, gritos de golo. Um pássaro poisa no parapeito da janela e canta.

2 comentários:

  1. E como é bom ouvir o canto dos pássaros. Hoje de manhãzinha ouvi o chilreado das andorinhas no alpendre da cozinha: fugiram mal abri a janela.
    Também não tenho visto os anjos, espero que os encontros no Olimpo nos sejam favoráveis e que as bolas voltem a rolar nos pátios das escolas.

    Boa noite, HV.
    🌻
    Maria

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  2. Esperemos que sim, esperemos que tudo volte à normalidade dentro de pouco tempo e sem danos, de preferência.

    Boa noite, Maria.

    HV

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