Olhei para a rua e, de súbito, apeteceu-me ouvir o ciclo de
canções Winterreise (Viagem de
Inverno), de Franz Schubert. Oiço a primeira interpretação que encontro, com a
esperança de uma surpresa, mas não era aquilo que desejava. Procuro uma edição
que junta Alfred Brendel e Friedrich Fischer-Dieskau e deixo-me deslizar na
tarde. Segundo o calendário estamos a abandonar o Inverno e na próxima estação
tomamos o comboio da Primavera, mas o dia chegou mascarado de invernia. Chove e
o horizonte cobre-se de uma melancolia tépida. Os campos de jogos da escola
aqui ao lado estão vazios, cobertos por finos lençóis de água. As árvores
vestem-se de verde, mas os seus matizes são tão distintos que só um hábito
enraizado me permite usar a mesma palavra para designar cores tão diferentes.
Uma vez, talvez num documentário, descobri que uma certa tribo de esquimós
teria mais de sessenta palavras para designar o branco. Também eu agora
necessitaria de um vocabulário enorme para designar os verdes que vejo ou para
classificar estes dias, em que a nomenclatura semanal começa a diluir-se. Sim,
hoje é sexta-feira, e depois? Que diferença faz? Ainda não fui espreitar as
torres do castelo, mas a orquídea amarela deu as primeiras flores. Há pouco recebi
um vídeo com o meu neto a desarranjar a madrugada aos pais. Do que temos mais
saudades aqui é de uma mera possibilidade, a de poder estar com os netos. Deixo
o espírito entregue à voz de Fischer-Dieskau e agradeço ao mundo da técnica que
nos deixa ouvir os que partiram sabe-se lá para onde. Talvez Deus sinta prazer
em ouvir Schubert. Prometo-me, apesar de mortal, que dedicarei as próximas
horas a ouvir os três ciclos de canções de Schubert. Hoje é sexta-feira, dia 20
de Março. O Inverno e a Primavera lutam
arduamente pela prevalência. O tempo porém é um deus impiedoso e fará o
calendário triunfar.
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