quarta-feira, 18 de março de 2020

Quando on a que l’amour

Mantenho os hábitos instalados. Não sei, porém, quanto tempo as rotinas resistirão ou se uma nova normalidade virá tomar conta dos dias para lhes dar uma aparência de sentido. Oiço o ruído de um corta-relvas. Levanto-me e confirmo aquilo que oiço, há alguém a aparar a relva da praceta. A partir de agora talvez precisemos de uma nova forma de verificação da realidade. Não basta que uma coisa soe para que ela exista. É preciso vê-la. E nada garante que esta dupla verificação esteja correcta, embora seja um pouco mais difícil, apenas um pouco, que se seja vítima ao mesmo tempo de ilusões sonoras e alucinações visuais. Na minha secretária amontoam-se papéis. Ordeno-os e nisso há um prazer específico, pois toda a classificação é um começo de vitória sobre o caos, e vitórias é aquilo que as pessoas mais precisam. Desenho estratégias para manter a sanidade e as actividades correntes a correr. Oiço vozes e vou à janela. Três homens confraternizam, fumam, mantêm uma quase distância. Um casal que conheço bem, ambos entrados na casa dos oitenta, passeia devagar, ela amparada por uma bengala e pelo braço dele, ele direito como se dissesse podes confiar em mim. Partilham o peso da solidão e a ameaça que parece tudo rodear sem alterar rotinas. Ao vê-los lembro-me de uma canção de Brel que começa assim Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Já pouca gente sabe francês, lembro-me, e sinto uma estranha saudade dos tempos em que descobri a música de Brel. Então recorro ao Youtube e escuto a canção. Contrariamente à minha natureza, pouco dada a manifestações sentimentais, acompanho-a e canto em surdina Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Depois, paro e deixo que a canção se escoe e olho para mim atónito. Hoje é quarta-feira, dia dezoito de Março. Escrevo o nome do mês com maiúscula e esse pequeno prazer ortográfico contenta-me.

6 comentários:

  1. Uma língua bem mais bonita que o Inglês, só superada pelo Italiano.
    ~CC~

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    1. O Frederico Lourenço decidiu ensinar Latim no facebook e começa assim a primeira lição: "Vou partilhar um segredo convosco. A beleza absoluta existe. É a língua latina." O italianos estará mais próximo, depois o francês e alguma beleza há-de chegar ao português.

      HV

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    2. Completamente de acordo com o Frederico Lourenço, agora que até já activei o FB há uma década desligado, hei-de espreitar o dele.
      ~CC~

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    3. Trata-se da página "Latim do zero - Página de Frederico Lourenço para a aprendizagem do Latim".

      A única coisa necessária para acompanhar é ter a gramática que ele publicou.

      HV

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  2. Gostei de saber que o HV teve um dia cheio de prazeres:
    - Prazer de arrumar papéis
    - Prazer de ouvir Brel
    - Prazer ortográfico

    Que amanhã seja um dia ainda melhor :)
    🌻
    Maria

    P.S. Fui ouvir o Brel, também cresci a ouvir os franceses...

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    1. Ou pelo menos que não seja pior. Desejar isso já é um grande desejo. E ouvir Brel faz sempre bem ouvir.

      Que amanhã seja um bom dia, para si.

      HV

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