Oiço o canto dos pássaros meus vizinhos. De mais longe chega o ronco de um carro pertencente a alguém que imagina estar em Le Mans. Há coisas que nunca passam e mesmo a actual situação não assegura que exista um salto no QI das pessoas. Não estamos num tempo de vigília mas de vigilância, digo-me para me convencer. Vigiamo-nos a nós mesmos temerosos dos sinais. O pior é a dilação da espera, de uma espera que nem se sabe do quê e que se resume em aguardar que tudo isto passe e a velha vida volte. Agora, faço pequenas caminhadas dentro de casa. De um lado, vejo o hospital com as paredes maculadas pelos fungos, do outro avisto duas torres do velho castelo, batidas por um sol quaresmal. Evito explorar a simbólica que a paisagem guarda e olho para a praceta aqui em baixo. Não posso furtar-me à recordação dos quadros de Giorgio de Chirico. Na verdade, são poucas as coisas de que podemos resguardar-nos desde que chegámos a esta terra. Ocorre-me, então, que somos extraterrestres que lutam por se habituar ao ambiente de um planeta quase hostil e para o qual não foram feitos. São tempos propícios para a proliferação de metáforas e alegorias. Toda a literatura nasce de uma estranheza, de uma inquietante estranheza, e este é um tempo propício. A sirene dos bombeiros acabou de assinalar as doze horas. O dia dobra o cume e começa a diminuir, as orquídeas, porém, erguem-se em direcção aos meus olhos. Olho-as e lembro-me dos netos. Sorrio para enfrentar a ausência. As acácias começam a deixar escapar dos seus dedos imploradores o verde das primeiras folhas.
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