Daqui a pouco devo participar num exercício de penitência. Penso isto e rio-me. Afinal estamos na Quaresma e este é um tempo penitencial. Depois ocorre-me a possibilidade de já não ser assim. Não vejo ninguém com ar penitente, nem que se exima de carnalidades. Os jejuns passaram de moda e a abstinência contraria as regras do mercado. A ideia é nunca nos abstermos seja do que for. Alguém terá de fazer sacrifícios pelo bem da comunidade e hoje cabe-me a mim, intimo-me com a habitual tendência para o exagero. Lembro-me de imediato de alguns sacrifícios célebres. O de Isaac, que prazer em não escrever Isaque, por Abraão e o de Ifigénia. Naqueles tempos as coisas eram bem mais sérias. A tarde espuma um sol esbranquiçado, preguiçoso, enquanto eu antecipo o altar que me espera, os artifícios dos sacerdotes e sacerdotisas de serviço e o próprio deus, perante o qual sou completamente ateu, a que eles votaram as suas vidas. Há escolhas que são tão eloquentes que nem vale e pena sublinhá-las. O melhor é não fazer juízos apressados, pois houve quem visse no carrasco um ser sagrado, a pedra angular sobre a qual se constrói o edifício social. Hoje estou com uma tendência desmedida para o enigma, mas tudo no mundo é enigma, a começar por esta chávena por onde bebo o café e a acabar no facto cru de haver tardes, noites e manhãs. Respiro fundo e só espero que chegada a hora, em plena liturgia, não me dê o sono. Ando a dormir pouco e mal.
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