terça-feira, 31 de março de 2020

Março acaba

Imagino que esteja frio lá fora. O aquecimento central tem trabalhado com zelo e um site de meteorologia confirma que a temperatura está baixa para a época. O ano passado, por esta altura, há muito que a caldeira não trabalhava. Também as estações e os meses são volúveis, incapazes de seguirem um plano uniforme, planeado com cuidado. Lastimo que a natureza tenha trocado a burocracia pelos impulsos espontâneos, frutos do acaso e filhos da incerteza. Entrega-se a variações apenas para se distrair e confundir os mortais, já de si tão confusos. Chega até mim o zunir de um aspirador, alguém que num apartamento vizinho mata o tempo com excessos de limpeza e, sabe-se lá, de arrumações. Também eu precisava de arrumar a minha mente, mas não encontro armários disponíveis e as estantes existentes não têm prateleiras. Deveria haver um Ikea para consciências em convulsão. Sou obrigado a amontoar informações, sem que um princípio de ordem se estabeleça e num qualquer futuro me permita, sem tropeções, usá-las. Encolho os ombros. Qual a importância de falar em bugalhos mesmo que me perguntem por alhos? Deveria censurar esta tendência para recorrer a ditos ao gosto popular, mas talvez seja tarde para arrepiar caminho. Já pensei em começar a descrever as paisagens que se avistam das diversas janelas do escritório, mas ainda não estou suficientemente enlouquecido. Recosto-me na cadeira e deixo-me invadir pela música para piano de Fauré. Devolve-me alguma sanidade. Depois, olho lá para fora e tudo parece normal. Um pássaro voa de uma árvore para outra, um carro contorna uma rotunda e as acácias, esgalgadas, vão-se cobrindo de um folhedo verde que as há-de compor. Hoje é terça-feira, dia 31 de Março. O mês acaba envolto numa capa cinzenta de tristeza, sem aura nem fortuna, contente por ir desaguar no dia das mentiras.

Sem comentários:

Enviar um comentário