Imagino-me a escrever um diário de bordo, mas o barco não
sai do lugar. Os ventos não sopram e a armada está retida. Como não sou caçador
não corro o risco de ter irritado a deusa ao matar-lhe um cervo na floresta
sagrada. Também não sou Agamémnon, nem a minha missão é ir pôr cerco a Tróia.
Tudo isso deixa-me um pouco mais tranquilo. Desde manhã que oiço Sonatas e Partitas
de Bach, mas é um ouvir distraído, uma música ao fundo, que se derrama sobre
mim enquanto trabalho, envolve-me e talvez fale com alguma coisa escondida na
cave da minha consciência. Olho à volta e contemplo todas as coisas inúteis que
fui acumulando ao longo da vida. Em tudo isso ainda arde a febre do desejo, a
pouca conta que tenho das possibilidades finitas que me são concedidas, a
grande fábrica da fantasia que recebi de presente já não sei de quem. A
Primavera cresce no ramalhar do arvoredo, embalada pelo canto dos pássaros e o
zunir dos insectos. A luz alivia o tom carregado do verde dos cedros e não oiço
vozes humanas. Daqui a pouco terei uma reunião. Cada um dos reunidos estará em
sua casa e todos se hão-de espreitar com espanto através do monitor, como se
fossem fantasmas, gente desencarnada, tomada por preocupações risíveis. Sem se
dar por isso sofremos uma transformação ontológica. Transitámos de seres de carne
viva para imagens virtuais. Lembro-me então que a grande promessa da Páscoa dos
cristãos é a ressurreição da carne. Hoje é quarta-feira, dia 25 de Março. Os
dias deslizam vagarosos, como as nuvens que ocultam o sol. Oiço vozes infantis,
agora que Bach se calou. Tenho de ir espreitar o friso das orquídeas ou as
torres do castelo.
E provavelmente na reunião estarão vestidos com o novo look: parte de cima com roupa de sair à rua e parte de baixo com calças de pijama ou fato de treino e pantufas:)
ResponderEliminar~CC~
Talvez (as pantufas ou semelhante, por certo), mas em princípio não se descobrirá.
EliminarHV