segunda-feira, 23 de março de 2020

Stabat Mater

Num tempo em que a mobilidade se tornou, também ela, uma pandemia, com toda a gente a mover-se para todo o lado, não deixa de ser curioso que ficar em casa se torne uma verdadeira epopeia. Os helenos não se deslocam para Tróia, nem os Gamas demandam a Índia. Ficam em casa e esse é todo o heroísmo que nos resta. Somos heróis domésticos e enfrentamos não pequenos perigos sentados à secretária ou num sofá, enquanto o tempo passa, agora tão vagaroso, tão dado a demoras, tão lânguido, tão pouco compassivo com os anseios dos novos semideuses. Não tarda e não há Penélope que suporte o seu Ulisses, que não deseje que ele se vá para a primeira Tróia que o chame. Fora eu dado ao filosofar esotérico e que belos pensamentos haveria de ter sobre a languidez da duração ou sobre a diferença entre Cronos, o tempo medido pelo relógio, e Kairós, o tempo oportuno para que algo aconteça. Não sou dado, porém, nem à filosofia nem ao esoterismo, cujas competências o destino decidiu negar-me. Evito bater à porta de tais arcanos e embrulho-me na capa da perplexidade. Sento-me à janela e contemplo o deslizar das nuvens, a cor do arvoredo, o vazio da rua. Das colunas sai o Stabat Mater, de Pergolesi. Deixo-me envolver na dor daquela mãe e olho o horizonte, na esperança de que exista ainda um horizonte que espere que o olhem. Hoje é segunda-feira, dia 23 de Março. A Quaresma progride no silêncio da cidade. Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius, e isto é tudo o que me ocorre.

2 comentários:

  1. A mim o que me ocorre é que o fantástico, o maravilhoso, o mais desejado, festejado e elogiado de todos os últimos anos, que só nos iria trazer coisas boas - o ano VINTE VINTE - enganou-nos muito bem enganados...
    Possivelmente deveríamos ter apostado mais naquela teoria de que os anos bissextos são aziagos; ou talvez não, pelo menos andámos felizes e contentes durante quase dois meses...

    Gostava de ser mais optimista, caro HV, mas não consigo, tanto mais que começou agora a chover.

    Desejo o melhor para si e família, que o seu netinho possa em breve ir aí desarrumar-lhe as estantes e que recomecem os jogos de badminton.
    Tudo é possível :))

    🌻
    Maria


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    1. Isto de fazer prognósticos não é grande coisa. O mais plausível é eles saírem furados.

      Era bom, de facto, que viesse calor e, contrariamente ao que é habitual, um tempo seco seria bom, mas há esperar. Esperar no duplo sentido. Aguardar e ter esperança.

      Muito obrigado pelo que me deseja. Não é fácil saber que não se pode ver os netos e os filhos.

      Que tudo lhe corra bem, a si e aos seus, Maria.

      HV

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