Escando os dias como se fossem versos, espero encontrar neles a métrica que dê ritmo ao desconcerto, que transforme a cacofonia numa peça musical digna de ser escutada num futuro em que a memória destes dias seja apenas uma sombra rente ao entardecer. Oiço o barulho de uma rebarbadora, mas não consigo perceber de onde vem. Não é a primeira vez que me atinge, nestes dias, a rugosidade daquele ruído, vindo da rua. Malditas aliterações e assonâncias. Devia evitá-las para não me estragarem a prosa. Vou à janela, olho para aqui e para ali, mas não descubro a fonte do incómodo. Talvez seja apenas parte de um pesadelo, embora eu jure que estou bem desperto, e não me venham com a história de Descartes que não se é capaz de distinguir o sono da vigília. Na avenida é notório já o corrupio dos automóveis. Deslizam como se tivessem conquistado a cidade a um inimigo implacável. Reparo que dei um erro ortográfico, emendo-o, mas fico infeliz, a palavra era mais bela com o erro do que sem ele. Daqui se prova que entre ortografia e estética não tem de haver compatibilidade. Correcção e beleza raramente andam de mãos dadas, mas não quero lançar falsos testemunhos. As oliveiras que ontem tinham desaparecido voltaram para o seu lugar e isso tranquiliza-me, como se me dissessem que todas as coisas têm um lugar a que podem voltar. Hoje é terça-feira, dia 21 de Abril. Continuo a enunciar o dia da semana e o do mês. Faço-o como se isso me protegesse de qualquer inimigo inominável, mas o mais certo é que ainda me transformo em calendário. Antes em calendário do que em herbário, digo-me, mas não estou certo se deveria ter feito tal comentário. Se cada dia fosse um alexandrino, Abril teria trezentas e sessenta sílabas métricas. Não haveria quem suportasse tanta poesia. Talvez bastasse a redondilha maior e ainda dava letra para um fado.
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