quarta-feira, 1 de abril de 2020

Um dia sem tino

Abril nasceu com ar de desterrado, alguém a quem tenham imposto a pena de um longo exílio, dez anos de ostracismo. Envolto em chuva fria, começa a viagem desapegado das dores dos homens. Não sei se para compensar o olímpico desdém do recém-nascido, oiço as Canções do Pôr-do-Sol, de Frederick Delius. Hoje não há sol para se pôr e o anacronismo da música deu-me um súbito contentamento. Talvez tudo se resuma a um desarranjo cronológico, a uma crise gerada pela mudança da hora ou pela inconstância do calendário. Passo a mão pelos cabelos, olho para a rua, respiro lentamente e deixo que a voz do barítono ecoe, até que a contralto a interrompe. Também para mim deveriam contar os óstracos para me banirem desta república. Não que seja cidadão influente, mas porque há que limpar a cidade de indigentes e eu já não consigo disfarçar a minha aptidão para a inópia. Usei este termo que ninguém usa apenas para não usar indigência, que ficava mal naquele lugar e há que ter cuidado com o que fica mal, nesta hora em que ninguém nos vê. Consolou-me hoje a palavra de um filósofo ao dizer que as pessoas habituadas a seguir as reformas linguísticas são mais fáceis de manipular. Sinto-me assim protegido contra todas as manipulações, pois sou um fervoroso defensor da contra-reforma linguística, ortográfica, gramatical e o mais que quiserem. Sou um velho reaccionário linguístico e por mim poderiam restaurar a ortografia do tempo da monarquia. Como se vê, o isolamento social não é o mais indicado para cultivar a sensatez dos indivíduos, ainda por cima num dia sem tino como este. Hoje é quarta-feira, dia 1 de Abril. Parece confirmar-se o adágio popular de que teremos águas mil. A sabedoria comum fascina-me e tomo-a sempre por verdadeira, mesmo que o mês seja de seca extrema. Há que preservar as tradições.

4 comentários:

  1. Onde é que eu assino por baixo?!
    Sou incapaz de seguir o AO.
    ~CC~

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    1. O acordo, infelizmente, já ganhou a parada. Ao obrigarem os alunos a aprender dessa forma, esperam estancar a contestação pelo desaparecimento das gerações que aprenderam com a regra anterior. Isso também terá acontecido com a simplificação ortográfica de 1911. Durante muito tempo as pessoas escreviam segundo a ortografia anterior, depois a obrigatoriedade da regra nas escolas fez o seu trabalho. Agora vai ser a mesma coisa.

      HV

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    2. Infelizmente também acho que ganhou.
      E o que é mais triste é que eu já nem sei escrever correctamente, dou comigo cheia de dúvidas acerca de certas palavras e, muitas vezes, acabo por escrever como eles querem e não como eu queria escrever.
      A cabecinha já não é o que era...

      Maria

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    3. Fui um truque baixo, pôr as pessoas perante um facto consumado, mesmo que pouca gente defenda o acordo. E do ponto de vista tanto político como económico - a grande motivação - não serviu para nada. Uma tristeza.

      HV

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