Ao acordar, naquele momento em que a consciência abandona o
estado penumbroso onde se entrega às habituais deambulações, numa negociação
difícil entre as pulsões do inconsciente e os imperativos do superego, veio-me
à memória um fado cantado por Amália Rodrigues. Estranha Forma de Vida. Pensei, então, que tudo se resumiria a
transitar da vida habitual para esta estranha forma de vida, até que se
tornasse um hábito e perdesse a estranheza, a inquietante estranheza que é a
dela. Depois, tudo isto se apagou. Há pouco sentei-me no chão de uma das
varandas e, enquanto lia, apanhava sol. Se a vida decorresse conforme o
habitual, a casa transbordaria e aqui encontrar-se-iam quatro gerações, em que
a pessoa mais velha tem mais 85 anos do que a mais nova. Nestes momentos, a
precisão aritmética torna-se central. No jornal, vejo que morreu Stirling Moss.
Não me lembro dele correr, mas quando me deu a febre da Fórmula 1, lá num dos
recantos da adolescência, ele era uma lenda ao lado de Juan Manuel Fangio. Num
dos capítulos da sua longa diatribe contra os deuses dos romanos, em A Cidade de Deus, Agostinho de Hipona lembra
que em Roma se tinha Fórculo como deus das portas, Cardea por deusa dos gonzos
e Limentino como deus protector dos umbrais. Contrariamente ao que os
historiadores contam, não foi o engenheiro Taylor que descobriu a
especialização do trabalho, mas as religiões politeístas que chegaram a um grau
tal de precisão que o deus que se ocupa das portas nada sabe da protecção dos gonzos,
das fechaduras nem dos umbrais. E tudo isto interessa para quê? Para nada,
claro. Hoje é domingo, dia 12 de Abril. Os católicos revivem a ressurreição de
Cristo fechados em catacumbas. O sol foi coberto por nuvens e eu, dentro de
minutos, tenho uma missão a cumprir.
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