Ao fim de não sei quantas semanas comprei livros. Heróides, de Ovídio, Poemas, de Tibulo e Epístolas, de Horácio. O confinamento predispôs-me para os
clássicos, dir-me-ão. Falso, os motivos são vulgares. A editora está a
vendê-los com um belo desconto e ao fim de tão grande período de abstinência
decidi que estava na hora de fingir que as coisas são como sempre foram, que a
natureza é imutável e a realidade voltou aos carris de onde nunca deveria ter
saído. Uma ilusão, mas agora tenho um novo horizonte, o da chegada dos livros,
o ritual de os desembrulhar, de passar as mãos pelas capas e os olhos pelas
páginas impressas. Há que ter cuidado na tarefa de lidar com o correio, não
seja uma carta armadilhada, não venha na encomenda uma bomba invisível. Sem
darmos conta, movemo-nos já noutro mundo, novas regras emergem, outros gestos
são obrigatórios. Talvez aprendamos a justa distância, diz-me a consciência,
sempre agastada com as homilias dos afectos, com as pessoas a beijocarem-se por
tudo e por nada. Neste caso, um dos poucos, partilho o ponto de vista da minha
consciência. O ideal seria introduzir a vénia como forma de cumprimento
habitual. Uma leve inclinação da cabeça e o mundo pareceria mais sensato e, por
certo, o deus Eros agradeceria, pois nada o torna mais alegre do que essa
distância que mantém o desejo em tensão. Bem, o autor assim como me proibiu
tiradas políticas, também não me permita derivas eróticas ou sequer
considerações sobre o assunto. Sou um narrador obediente. É mais recomendável
falar do céu cinzento, do verde das árvores, do silêncio do mundo ou da
algazarra que se deixou de ouvir. Tenho pena da minha caixa de email. Parece
uma Penélope a atrair pretendentes, mas não há Ulisses que lhe valha. Hoje é
quinta-feira, dia 23 de Abril. Não chove, mas imagino a água pelos córregos, os
campos a verdejar e, de súbito, descubro-me um amante da natureza. No hospital,
os vidros dos carros reverberam, enquanto a tarde lépida se afasta da manhã.
Espera-a a noite.
Há muito que não sei o que é receber encomendas em casa, talvez agora possa experimentar, já que o confinamento o permite. Parece que já nem é preciso assinar o papelinho a dizer que recebemos, certo? Mas falta-me tempo para os clássicos, por ora não serei capaz...
ResponderEliminar~CC~
Livros, ainda não sei se é preciso assinar, pois encomendei-os ontem, nem sequer sei se serão os CTT a fazer a entrega. Quando, porém, recebi café, não houve lugar a qualquer assinatura, mas era uma empresa que não os CTT.
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