A expectativa de me sentar um pouco ao sol saiu gorada. O
céu cobriu-se de cinzento e as nuvens coam a luz, deixando passar uns raios
difusos que descem sem ânimo sobre o mundo. O vento faz ramalhar as árvores e a
voz de um pai chama continuamente pelo nome do filho. Ocupam toda a praceta
aqui em baixo, aproveitando o espaço que, por falta de transeuntes, se tornou
excessivo. Em tempos de grande incerteza manifesta-se à luz do dia, amplificada
pelo ócio e a tecnologia, uma plebe opinativa cheia de certezas, das mais
estapafúrdias e inverosímeis certezas, génios a quem tínhamos recusado a
reconhecer-lhe a vesga genialidade que os atormenta. A propensão para a vaidade
e o dogma é sempre grande. A colheita de indignados e irados também começa a
inchar. A vida foi sempre incerta. Um acidente, uma doença súbita, e a pessoa
desaparecia. Agora que todos os dias a contabilidade é actualizada, somos
confrontados com a pergunta se acabaremos por entrar no número dos infectados
e, estando neste, a que percentagem pertenceremos, à dos que se salvam ou à dos
que se perdem. Esta consciência sobrecarregada de que a vida é incerta tem o
condão de atormentar aqueles que se esqueceram da realidade e tinham no hábito
uma defesa para o medo de uma existência acidental. Um pássaro canta. Não o
vejo, mas oiço-lhe o conselho. Não é altura para meditações dessas, trina ele
com tonalidade sarcástica. Respondo-lhe que sim, que tem imensa razão, mas nem
sempre fazemos aquilo que queremos. Ele olha-me condescendente e cala-se. Ao
longe, corvos passeiam-se entre árvores, exibem com orgulho o brilho da
plumagem negra. Chamo-os, mas não me ouvem. Observo os telhados e vejo alguns
anjos. Conversam, riem-se. Uns fumam, outros bebem. Talvez contem histórias
indecentes sobre os homens. Talvez tracem planos para o resto da tarde ou para
a noite. Hoje é sábado, dia 4 de Abril. Os dias encadeiam-se uns nos outros com
morosidade, como se nos dissessem há que beber o cálice até ao fim. Bebamos,
então.
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