segunda-feira, 27 de abril de 2020

Meditabundos e cismadores

Abri a janela para que os barulhos do mundo chegassem até mim. A circulação automóvel começa a aproximar-se da de outros tempos. As pessoas têm pressa para voltar ao sítio onde se encontravam há dois meses, ao conforto da ignorância, pois não há coisa mais confortável do que não saber. Os que têm uma inclinação para moralizar os acontecimentos naturais hão-de ficar desiludidos com a ânsia deste retorno. Uma oportunidade tão boa para melhorar o mundo e as pessoas apenas pensam em voltar à dissipação habitual. Durante a história da humanidade, não por acaso, o desejo foi fortemente regulado, vigiado e perseguido se extravasava as duras fronteiras onde era contido. Depois, quando Diónisos derrotou Apolo, o desejo emancipou-se e, como todos os limites lhe têm sido retirados, é inimaginável que a eclosão de um vírus invisível seja motivo suficiente para que lhe ponham de novo o cabresto. Não sei o que me deu para me entregar a tão fútil reflexão. A falta de assunto torna as pessoas meditabundas e elas põem-se a cismar com coisas cuja compreensão está muito para além das suas possibilidades. Retrato-me disso como se confessas, contrito, um pecado mortal. Oiço pombos a arrulhar, imagino que estejam numa fase em que o desejo fale. Sempre estamos na Primavera e a vida precisa de se multiplicar. Se fechar a janela, o mundo cala-se e é possível que deixe de existir. Hoje é segunda-feira, dia 27 de Abril. A meteorologia promete aguaceiros fracos para mais logo, para aquela hora em que eu prometera ir à rua para caminhar pelo mundo, como se me tivesse tornado um homem livre. Não tornei.

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