O último é batata podre. As coisas afinal não mudam tanto
quanto se supõe. Duas crianças, um rapaz e uma rapariga, irmãos por certo,
correm na praceta aqui em baixo, sob o olhar atento da mãe. Parceria uma cena
trivial de um tempo sem sobressaltos, caso a mãe não falasse com amigas a uma
distância cheia de desconfianças. Agora oiço o barulho de garrafas a cair no
vidrão. Depois, silêncio. Penso nos meus netos, tornaram-se presenças virtuais,
chegam em vídeos ou em conversas através daquelas plataformas cujo nome prefiro
silenciar. Como qualquer avô, faço caretas e figuras idiotas, pergunto coisas
que enviesam os olhares das adolescentes. O rapaz, do alto dos seus dezoito
meses, condescende por vezes em dar-me cinco segundos de atenção. O último é
batata podre, recordo-me, e nesta sentença há toda a sabedoria do mundo. Existe
outra sabedoria, mas essa não é deste mundo. Os últimos serão os primeiros. O choque
destas duas avaliações nunca foi tão claro como na vexata quaestio da batata podre. Se o último afinal é o primeiro,
quem será o batata podre? Será que na catequese colocam às crianças dilemas
destes? O dia já se soltou da manhã e, envolto na capa da tarde, ruma pelos
campos. O último será mesmo batata podre? Hoje é sábado, dia 25 de Abril. A
cidade contínua sitiada, mas os habitantes habituaram-se ao assédio do inimigo.
Caminham pelas ruas, evitam passar perto uns dos outros. Na passadeira, uma
mulher arrasta um cão minúsculo. Chega ao outro passeio como se tivesse
aterrado noutro continente.
Sem comentários:
Enviar um comentário