As águas de Abril recolheram-se à cisterna, onde um deus
imprevisível e de má catadura as armazena para as usar ora como bênção, ora
como castigo dos mortais, segundo uma disposição cujo segredo está oculto aos
poderes humanos. Louvo-me nestas banalidades e evito pensar seja no que for. O
ideal seria pensar em nada e o mais belo de todos os ideais seria que certas
pessoas evitassem o uso sempre deficiente do cérebro e se entregassem a um
estado vegetativo contumaz. O mundo tornar-se-ia um lugar menos triste se esses
animadores nos poupassem os rasgos. De manhã, ao levantar-me, havia sol na rua.
A Primavera endireitava-se sobre as pernas ainda cambas e ensaiava um passeio
pelas ruas. Ninguém diria que cambo tem a sua origem num radical céltico. Asseveram-me,
porém, que assim é. Eu acredito, pois o que mais resta a um confinado do que
crer? Continuo a praticar os pequenos gestos quotidianos de sempre, faço-o como
se tratassem de rituais que me ligam a esse tempo sagrado antes da queda nesta
situação. Estes dias fazem-me lembrar, por vezes, aquelas tarde intérminas do
Verão, em que as horas de calor terrível se recusavam a passar e eu lia, lia.
Não, não era Tolstoi, nem Kafka, nem Thomas Mann. Nesses dias ainda não tinha
adoecido o suficiente. Lia o Texas Jack, o Condor, o Ciclone, o Falcão e as
célebres aventuras do major luso-britânico Jaime Eduardo de Cook e Alvega. O
que eu não sabia na altura é que, no original inglês, o major era
tenente-coronel e de português tinha nada. Também não sabia que o tradutor era
Anthímio de Azevedo, o mais célebre meteorologista português. Agora que sei
isso tudo, não faço ideia para que me serve essa sabedoria. Hoje é
quarta-feira, dia 22 de Abril. O vento estremece a folhagem do arvoredo,
contínuo a ouvir a voz de Montserrat Figueras. O Major Alvega deixou de
combater, já não me recordo das histórias do Condor nem do Ciclone e talvez
Texas Jack tenha sido abatido num duelo. Um dias destes, caso não me cuide,
ainda acabo a falar na Ponderosa, o rancho dos Cartwright.
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