terça-feira, 27 de setembro de 2022

Apoteose e queda

Não é raro acontecer dar por mim envolvido em pensamentos inúteis, muitas vezes construídos sobre a areia de analogias frouxas. Foi o que aconteceu há pouco. Em vez de pensar sobre os males que crescem como cogumelos neste mundo – por certo, o melhor dos mundos possíveis, visto não haver outro –, o espírito começou a especular sobre o caso em que o momento de grande apoteose é já o primeiro de uma queda que se vai tornando vertiginosa. A analogia sem tino estaria em comparar a subida até ao cume da montanha e a ideia de pessoa. Atingido o ponto mais elevado da montanha, resta a descida, a queda. A ideia de dignidade da pessoa foi o instante supremo de glorificação, o cume, do ser humano. Depois, a descida. Isto veio a propósito de um curto-circuito ocorrido na minha rede neuronal entre os senhores Immanuel Kant e Robert Musil. O primeiro assinala o momento apoteótico da afirmação da dignidade da pessoa, fundada no poder que os seres racionais têm de dar fins a si mesmos. O segundo, com o romance O Homem sem Qualidades, reconhece o avanço triunfal da impessoalidade. Kant é o cume, o momento apoteótico de uma aventura que começara no Renascimento. A partir dessa hora restou a descida que parece não ter parado. Por certo, não devia pensar nestas coisas. Não tenho solução para lhes dar, e toda a gente quer soluções para tudo e para nada. Estes pensamentos, por outro lado, revelam que tenho uma alma, caso existam almas, inclinada para a ociosidade. O que não será um bom indicador de carácter. O que vale, apesar de tudo, é eu ser um narrador, uma figura ficcional, a criação de um autor com o qual tenho divergência fundas e desavenças constantes. Ainda não compreendi as razões que o levam a pôr na minha cabeça este tipo de coisas, quando me podia destinar a contar a história da criança que chora no parque infantil ou a descrever a voz da mãe, não muito feminina, que tenta consolá-la. Eu sei que aquilo que é feminino e aquilo que é masculino se tornou objecto de disputa, mas estou proibido de tocar em assuntos que tenham a política de permeio. Deo gratias!

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