Descobri que dois livros que tinha comprado em férias já constavam nas estantes. O pior é que, antes de sair e de os encomendar, tinha ido verificar se existiam. Verifiquei, mas não vi. Por vezes, os deuses conspiram para nos perder. Não que a perda seja muita, mas é uma espécie de humilhação imposta pela realidade. Tenho de fazer o levantamento das coisas repetidas e pô-las à venda. O problema é que não tenho alma de vendedor. Como se sabe, há almas de todos os géneros e cada um tem a sua. Os que têm alma para vender, fazem-no com quem bebe um copo de água. Não é o meu caso, o que é sinal de desastre num mundo formatado pelo espírito do mercador. Quando o terceiro-estado tomou conta do mundo, tudo se converteu em mercadoria regulada pela lei da oferta e da procura. Esta é a mais curiosa das leis. Parece fundar-se na liberdade. O preço das coisas, de qualquer coisa, depende do exercício de vontades livres que chegam a acordo entre si. O efeito disto é que tudo deixou de ter valor e passou apenas a ter preço, que varia conforme os humores de compradores e vendedores. Os meus livros têm um preço, embora para mim tenham valor. Não são mercadorias, mas qualquer coisa que rompeu com o fetichismo da mercadoria. Contudo, isso é apenas um assunto privado. Objectivamente, eles têm um preço. Acho que me perdi no jardim dos caminhos que se bifurcam. Queria eu dizer que um mundo regulado pelo espírito dos mercadores é um mundo onde o valor foi substituído pelo preço. As coisas deixam de valer e passam a custar. Não sei o que me deu para escrever este conjunto de bagatelas, há muito conhecidas. Tenho a imaginação em pousio, mas isso não significa que, depois desse período de descanso, ela produza mais e melhores ideias. Já não tenho idade para me iludir, embora nunca desista de o fazer.
Houve um sujeito que outrora fez a distinção entre valor de uso e valor de troca. E, agora que o recordei, ocorreu-me que mesmo neste mundo de mercadores ainda existe um modus vivendis que permite unificar o uso e a troca (ie, o valor e o preço),. Requisita-se o livrinho na biblioteca pública para o ler (destilando-lhe o valor) e depois trocá-lo por outro. Mas sabe-se que todas as teorias são imperfeitas e para quem gosta de anotar as páginas há que comprar, hélas.
ResponderEliminarHá muito que não frequento bibliotecas públicas, mas já tenho pensado em voltar. Têm coisas que já não se encontram e que quero ler. Tenho a vantagem de, também há muito, ter deixado de escrever nos livros. Achei todas as minhas anotações dispensáveis. Quanto à questão do valor e do preço, ela é uma referência enviesada a um avó, digamos assim, desse que se preocupava com o valor de uso e o valor de troca.
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