quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Emancipações

Há coisas que são efectivas libertações, se não mesmo acontecimentos emancipatórios. Emancipei-me desse dispositivo arcaico que incomoda qualquer homem, quando não usa casaco. Usei o adjectivo arcaico não porque saiba que o dispositivo em causa seja muito antigo, mas porque fica bem classificar qualquer coisa de arcaica. Fui emancipado pelo telemóvel. Não apenas por ele, mas por essas coisas maravilhosas que dão pelo nome de aplicações, mais conhecidas por app. Dinheiro? Uma app resolve. Cartão de cidadão, carta de condução, documento único automóvel e não sei mais o quê? Outra app resolve. Cartões diversos? Outras app resolvem. Emancipei-me da carteira, desse trambolho que não fazia a ideia onde, não vestindo casaco, o haveria de colocar. Não podemos negar a existência de progresso no mundo, nem mesmo de progresso moral, pois tudo aquilo que nos liberta e emancipa de tutelas várias é moralmente bom e substitui algo que, pelo seu carácter constringente, nos rouba a liberdade. Diante de mim tenho dois pequenos cadernos ou, para dar um mais cosmopolita, dois notebooks. São de excelente papel, têm capas atraentes, apetece mesmo estar com eles na mão. De resto, não servem para nada, pois não lhes maculo as páginas com a minha letra sofrível. Sofrível é uma palavra que me fez recuar muitos, muitos anos. Quando era estudante pós-primário, havia uma estranha escala de classificação do desempenho dos alunos. A estranheza, uma inquietante estranheza, uma real Unheimlichkeit freudiana, vinha da introdução entre o medíocre e o suficiente – melhor, entre o medíocre mais e o suficiente menos – do sofrível. Num dos dicionários de língua portuguesa que uso, no verbete sofrível encontro o seguinte: antiquado – nota escolar um pouco inferior a suficiente. Eu que recebi classificações sofríveis tenho, por isso, a prova do meu arcaísmo, para além da minha insuficiência. Fui classificado por uma escala definitivamente antiquada. Imagino que terá sido algum professor com pouca paciência para os desempenhos dos alunos que inventou o sofrível. O que este escreveu, pensou, pode-se suportar, pode-se sofrer. Daí o sofrível. Acho que vou oferecer os notebooks de papel às minhas netas.

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