sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Falar poeticamente

É possível que nunca tenha deixado de ser o hegeliano que em tempos supus ser e que mais tarde supus deixar de ser. Não porque me ache um narrador dialéctico, preocupado com a ciência da lógica – da lógica dialéctica, entenda-se – ou com a fenomenologia do espírito e o devir da história. Se continuo a ser um hegeliano é porque não consigo perder o hábito da oração da manhã, isto é, a leitura da imprensa. Serei um moderno, num tempo pós-moderno. Ora, estava eu a ler, no Público, os textos de hoje do António Guerreiro, quando deparo, na rubrica Livro de Recitações uma referência à expressão “carnificina climática” usada pelo secretário-geral da ONU. O que me chamou a atenção não foi o que disse Guterres, mas o comentário. Diz que é uma expressão muito católica, que vê por detrás do que se está a passar uma vontade de vingança. E acrescenta: Ora, a Terra, a nossa mãe Gaia, não tem nenhuma vontade de se vingar. E conclui: Estas projecções supersticiosas desviam-nos da razão científica… Imaginemos alguém que, encolerizado e cheio de ciúmes, mata um rival amoroso. Dizer que foi uma vingança – o resultado de uma vontade de vingança – por lhe disputar o objecto do desejo será supersticioso? Por certo, podemos fazer uma descrição absolutamente científica do comportamento do assassino. Explicar como as emoções agiram sobre o seu corpo e o seu cérebro, como isso desencadeou a acção que teve aquele resultado infeliz. É plausível que se possa fazer a descrição do acontecimento sem recorrer à expressão vontade de vingança, nem tão pouco aos pretensos móbiles da acção. Utilizar a expressão vontade de vingança é falar poeticamente, usar uma metáfora para descrever aquilo que poderia ser explicado pela neurofisiologia e pela mecânica, sem lhe acrescentar qualquer tonalidade moral. Contudo, este dizer poético do que aconteceu é muito mais eficaz do que a explicação científica do sucedido. Supor que há uma carnificina climática e que a Terra se está a vingar é falar poeticamente, usando o poder evocativo da poesia para dar a entender o que se está a passar, revelá-lo nas suas consequências. Acabo a semana útil e o mês de Setembro prolixamente. Deveria escrever menos e, de preferência, melhor, mas estou um pouco atordoado por ter descoberto que talvez ainda seja um hegeliano, embora não dialéctico, caso isso seja possível. Amanhã será outro mês.

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