domingo, 4 de setembro de 2022

Artes da ficção

Foi preciso um fim-de-semana com o meu neto para, por duas vezes, pôr os pés na areia da praia. Os netos têm poderes que só os avós reconhecem. A relação entre pais e filhos é contaminada pela necessidade de educar, impor regras, dizer não. A figura da autoridade é uma necessidade. Com os netos, as coisas são diferentes. No lugar da necessidade, reina a liberdade. No lugar da autoridade, a subversão de regras. Às vezes, porém, é necessário conter a ideia de subversão, pois parece que ela transborda da criança, sempre disposta a pôr as regras em causa, a encontrar modo de as furar, de lhes retirar a precária universalidade com que os adultos sonham revesti-las. Tirando estas aventuras de avô, restou o tempo de insónia. Consigo preencher esse tempo com leituras, o que não ajuda a pôr-lhes fim. Sem pegar em Serotonina durante o dia, em duas noites cheguei aos setenta por cento. Mais uma insónia moderada e acabo o romance. Conforme envelheço, não quero generalizar, menos consigo dormir. Agora, o neto e pais já se foram e eu preparo-me para retornar a casa. Aí chegarão as outras netas, para passar uma semana, antes que as aulas cheguem e a vida seja conspurcada com as nuvens negras da realidade. Não sei se é uma idiossincrasia pessoal, mas desde que um dia a minha mãe me levou à escola, tinha eu feito seis anos há um mês, que a vida nunca mais foi a mesma. Nunca me curei dessa traição, embora tenha disfarçado ao longo da vida. Não há nada como as artes da ficção.

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