quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O meu cérebro

Despeço-me da casa do Verão. Como sempre, não terei saudades dos seus dias. Amanhã chegará o Outono, onde tudo será mais belo e mais cordato, assim o desejo ou assim o espero. Entre o desejo e a esperança há uma grande diferença. No primeiro, ressoa a necessidade. É uma emanação da fisiologia. Na segunda, há uma confiança de a ordem do mundo se conformar com uma certa razoabilidade. Não é relevante saber se essa ordem do mundo deriva de um criador divino ou se é inerente à própria natureza. Na esperança, ressoa sempre a razão ou, melhor, a crença de que Deus ou a natureza, conforme as inclinações de cada um, sejam intrinsecamente razoáveis. O problema de tudo isto é que muitas vezes contaminamos a esperança com os nossos desejos e somos nós que introduzimos a desrazão no mundo e naquilo que esperamos. Outra dificuldade será não tanto que Deus ou a natureza sejam irrazoáveis, mas que a sua razão seja de tal modo complexa que não compreendamos os seus decretos e os pensemos irracionais. Ontem escrevi aqui Boris Vien e um leitor atento lembrou, e muito bem, que o nome é Vian e não Vien. O nosso cérebro prega-nos belas partidas. Não se trata tanto de uma ratoeira estendida pela homofonia, pelo menos é isso que parece a um português, mas o simples facto de Boris Vian não ser um autor a que tenha dado atenção. Fui procurar nas estantes e dele só encontrei Outono em Pequim, que sendo cá de casa não é meu. E o que terei lido desse autor francês? Nada, disso tenho a certeza. Ao citar o título Espuma dos dias, o cérebro vingou-se, estendeu-me uma armadilha e fez-me trocar o nome. Pode parecer que estou a operar uma distinção entre mim, o narrador sem narrativa, e o meu cérebro, acusando este pela falha ocorrida. É provável que assim seja. Na pilha de livros que tenho aqui ao lado para ler, há um, do filósofo alemão Markus Gabriel, que tem por título I am Not a Brain: Philosophy of Mind for the 21st Century. Se ele não é um cérebro, eu também não o sou. Aquele que recebi na lotaria genética tem propriedades que me aborrecem. Por exemplo, é demasiado lento quando tenho pressa em raciocinar ou apreender alguma coisa, demasiado rápido quando preciso de descansar e ele produz ideias atoleimadas a grande velocidade. Por outro lado, está sempre a pregar-me partidas, como a do Vien. Vivo no terror de ser por ele enganado em coisas mais gravosas que essa. Já reparei que tem imenso prazer em trocar-me os dedos quando estes batem no teclado ou, então, em fundir duas palavras numa só. Uma outra característica é ser prolixo. Apesar de tudo há coisas que nos unem. Nem ele nem eu gostamos do Verão e ambos somos cultores dos tempos de Outono, não o de Pequim, mas o de cá, quando não faz calor. Não podemos ser inimigos em tudo.

4 comentários:

  1. Vian, Boris ?!... Atenção à brigada dos costumes...

    https://www.youtube.com/watch?v=ELXvfoFGVNY

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    1. Não conhecia esta canção, de Vian. Aliás, só conhecia a inevitável Le Déserteur.

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  2. Vale a pena ouvi-las, são muito divertidas.

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  3. Reli O Arranca-Corações há muito pouco tempo (uma edição de 74), e verifiquei que o livro estava a empalidecer, de tal modo que havia páginas que se liam com alguma dificuldade. Daqui a uns anos temo que se torne um livro em branco. É uma boa partida de um surrealista esquecido.

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