Quase no início do seu último romance, Tudo é Princípio,
– publicado postumamente – Fernanda de Castro escreve nem ela tinha desses
feitios universais que ligam bem com toda a gente. Haverá alguém detentor
de um feitio universal? Talvez a realidade seja outra. Haverá pessoas que têm
um talento especial de se aproximar apenas daquelas a que se podem ligar sem fricção.
A repetição dessas aproximações cria a ilusão de possuírem uma capacidade para
se dar com toda a gente, mas o caso é outro. Possuem um faro excepcional para
detectar imbróglios e afastar-se de quem lhes criaria problemas. Para lá disso,
Fernanda de Castro foi uma figura central do mundo literário português no
século passado. Como aconteceu com Joaquim Paço d’Arcos, os seus compromissos
políticos acabaram por lançá-la na semiobscuridade. Não penso, porém, que o seu
lugar – o de ambos, diga-se – na história da literatura nacional vá depender
das suas opções políticas. O decisivo vai ser a qualidade literária. A espuma
da política passará e o que fica é a obra. As posições políticas, por mais
detestáveis que tenham sido – e foram-no –, de Knut Hamsun e de Louis-Ferdinand
Céline não constituem razão suficiente para serem banidos do Olimpo dos escritores.
Como se aprendeu com a mitologia grega, os deuses estão longe de serem
moralmente inatacáveis. O que os mantém os escritores no Olimpo são as obras e
não as ideias políticas. Hoje em dia há uma moda de censurar, se não mesmo de
banir, as obras, e as grandes e decisivas não estão imunes ao vírus, que têm laivos
de inadequação moral, e a política não deixa de ter contornos morais. Uma moda
detestável, que não é diferente, na substância, de pôr os livros no índex ou de
os submeter à censura, instituição que em Portugal chegou a ser denominada
eufemisticamente como exame prévio. Seja qual for o lado da barricada em que os
escritores portugueses estiveram entre 1926 e 1974, o decisivo é o que
escreveram. Se não já hoje, amanhã, por certo.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
No Olimpo dos escritores
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