Fui reconstituir um dente. O tempo de espera para além da hora marcada triplicou o tempo da reconstituição. Ouvi um pedido de desculpas, não foi mau. Alguma coisa estará a mudar, ainda que muito lentamente. Estou a exagerar, mas é preciso não esquecer que tenho, por vezes, uma certa atracção pela hipérbole. Como hoje é um dia dedicado à medicina, estou com curiosidade para ver quanto tempo, para além da hora marcada, esperarei no cardiologista. No livro de Houellebecq que estou prestes a acabar, a personagem principal, a dado momento, refere que está longe o tempo em que os caminhos de ferro franceses tinham como ponto de honra cumprir os horários. Portanto, ainda há uma memória de que em tempos cumprir o horário era sagrado. Não é o caso da medicina em Portugal. A experiência arcaica é que os horários não são para cumprir. Quando há esculápios que se empenham em fazê-lo – e começa a haver – estamos perante uma quase novidade. Era óptimo que se transformasse numa tradição ou, mesmo, num dogma cuja infracção representasse uma heresia. Não é que, nos dias que correm, a heresia afaste alguém de a cometer. Tornou-se marca de ousadia e distinção ser herege. Não me refiro apenas à religião, mas a qualquer assunto, pois todos os assuntos suscitam um corpo de crenças que, com o passar do tempo, se tornam canónicas. Ora, se se estabelecer uma analogia com o cancro, logo se percebe que este é herético. Há um código original que não se deve alterar, um texto sagrado, mas a introdução da inovação gera as neoplasias, que são uma espécie de doutrina herética em relação aos dogmas em que um organismo assentava. As consequências da inovação não são as melhores. Aqui, este texto entra em contradição. Apela à inovação como coisa boa e mostra que a inovação é coisa má. Talvez o autor sofra de uma incompatibilidade com a lógica. É uma possibilidade séria que o narrador não desmente, mas também não confirma.
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